‘True Detective’: o Alasca vai bem com Jodie Foster
O que seria dos dramas policiais sem detetives amargurados e obsessivos? Nic Pizzolatto, o criador de True Detective, compreendeu bem a importância desse perfil humano quando, em 2014, lançou a primeira temporada da série que se tornou um objeto de culto, em parte devido à dupla Matthew McConaughey e Woody Harrelson, nos papéis principais. Depois disso, a segunda e terceira temporadas, com outros intérpretes, não conseguiram produzir a mesma vertigem, de tal modo se tinha elevado a fasquia. Mas, com o intervalo temporal de uma década a separá-lo do impactante primeiro capítulo, o quarto momento desta série de antologia traz uma nova esperança. Não só em virtude de Pizzolatto ter passado o testemunho criativo a uma realizadora mexicana, Issa López, garantindo sangue novo na abordagem (o próprio ficou com um crédito na produção executiva), como pelo regresso de Jodie Foster a um género que não deixa de trazer à memória uma das suas personagens mais carismáticas, a agente do FBI Clarice Starling, de O Silêncio dos Inocentes (1991).
Essa referência esteve sempre lá, como explicou a nova showrunner de True Detective em entrevista à Vogue: “Quando assumi o projeto e revi a primeira temporada, percebi que havia uma grande influência do Seven – 7 Pecados Mortais [1995] de David Fincher, que adoro. Então revi o Seven e fiquei absolutamente surpreendida ao identificá-lo como uma descendência direta de O Silêncio dos Inocentes [1991], que me parece ser o instigador de todas estas histórias. São apenas quatro anos que separam os dois filmes. E pensei: não seria interessante se ambos fizessem parte da genealogia de True Detective, indo diretamente a algo do que os tornou incríveis? Aí tive a certeza de que iria escrever [a chefe de polícia] Danvers para Jodie Foster.” Um papel muito adequado, ainda mais numa altura em que a própria atriz se diz satisfeita com a partilha de protagonismo: “Tive o meu tempo, e este momento já não é necessariamente meu. É a minha vez de apoiar outras pessoas. Tenho algo para contribuir, porque acumulei experiência e sabedoria”, disse ao canal CBS, esclarecendo que não precisava de “fazer o mesmo papel” que fez quando estava na casa dos 20 anos.
Vem este sublinhado a propósito da sua personagem em True Detective, Liz Danvers – com um mau feitio muito diferente da jovem Clarice de outrora –, que configura também um retorno maduro à ficção televisiva. A saber, a última vez que Foster protagonizou uma série, Paper Moon (1974-75), era praticamente uma criança e estava em vias de se tornar uma das presenças mais fortes do cinema americano, desde que interpretou, recorde-se, a prostituta adolescente em Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese.
Mas quando a veterana declara que este já não é o seu momento, está a referir-se à riqueza do dueto performativo da série. Entenda-se: ela não é o único peso pesado da temporada. Na verdade, a detetive que a acompanha, Evangeline Navarro, interpretada por Kali Reis, acaba por gerar aqui um efeito de grande revelação. Uma atriz ex-pugilista, de robustez dramática extraordinária, que presenteia os seis novos episódios com algumas das cenas mais comoventes, por conseguir expressar a máxima fúria e a máxima fragilidade sem nunca pisar a linha invisível do overacting. Já a Danvers de Foster é “só” um caráter complicado, que se aprende a gostar à medida que vamos entrando pelas costuras sentimentais do tecido áspero que é a sua falta de paciência... e compulsão.
O mistério que veio do frio
Ambientado no extremo norte do Alasca, na cidade fictícia de Ennis, este quarto tomo de True Detective tem como subtítulo “Night Country”, um termo respeitante ao fenómeno de noite polar que atravessa todos os episódios. É, aliás, pouco depois do último pôr-do-sol do ano, a meio de dezembro, que se instala um arrepio na espinha com o desaparecimento de oito cientistas de uma secreta estação de pesquisa do Ártico. Enquanto chefe da polícia local, Danvers/Foster toma conta do caso, a certa altura permitindo a Navarro/Reis reatar com ela uma dinâmica profissional algo enferrujada...
O primeiro episódio tem qualquer coisa de azáfama “doméstica”, ao apresentar a energia específica daquela cidade pela sua (des)ordem natural, que contempla a mágoa da comunidade nativa (inupiaq). As mulheres detentoras de uma herança indígena têm, de resto, a função de personagens corais no meio desta investigação sombria e fascinante, que mistura as histórias íntimas tortuosas das próprias detetives com um caso de polícia antigo, que elas partilharam, e uma dimensão sobrenatural que será bastante mais pronunciada do que a das temporadas anteriores. Por vezes, na sua noite permanente, Night Country envereda mesmo pela sugestão do terror, embora o plano espiritual leve sempre a melhor sobre os vestígios do género.
Sendo, para já, um acontecimento no panorama das séries, a entusiasmante receção crítica à volta desta temporada terá sobretudo que ver com o pacto feliz entre um renovado ângulo feminino e a continuidade de uma lógica de duplas consistentes que faz equivaler Jodie Foster e Kali Reis ao sucesso de Matthew McConaughey e Woody Harrelson. Na escrita e realização de Issa López ressalta a plena consciência de que a nobreza da narrativa policial começa na espessura das suas intérpretes, aqui sem medo de fazer transbordar as emoções – há catarse com fartura. Mas, para além disso, a vibração da paisagem, essa vastidão claustrofóbica do gelo, e a malaise noturna revestem o novo True Detective de uma qualidade original impecavelmente sinalizada pelo genérico de abertura, ao som do tema Bury a Friend, de Billie Eilish.