A história do cinema contém uma história paralela da tecnologia das imagens e dos sons. Nas últimas décadas — talvez a partir de 1993, com o lançamento do primeiro Parque Jurássico —, essa história entrou num novo capítulo no qual, salvo melhor opinião, nos mantemos. A sua matéria nuclear poderá definir-se a partir de uma ironia contagiante, tão antiga como os filmes que Georges Méliès realizou há mais de um século (Viagem à Lua é de 1902). A saber: afinal, as imagens têm imaginação própria, existindo muito para lá do mundo que, supostamente, representam. Aí está, nas salas de todo o planeta, o exemplo sugestivo de Tron: Ares, uma aventura vivida (ou imaginada, como preferirem) no interior do universo dos computadores.Produzido pelos estúdios Disney, realizado pelo norueguês Joachim Rønning (que, em 2019, dirigiu Angelina Jolie em Malévola - Dona do Mal) Tron: Ares pertence a uma árvore genealógica que vale a pena recordar. Em boa verdade, no panorama criativo de Hollywood, antes de Steven Spielberg se lançar à conquista do mundo dos dinossauros, a Disney já tinha assumido uma atitude pioneira na aplicação de imagens geradas por computador (CGI, segundo a gíria industrial), lançando Tron, uma produção de 1982 concebida e dirigida por Steven Lisberger.A premissa central de Tron, proclamando que as máquinas têm uma vida própria que os humanos, em última instância, desconhecem, era tão antiga como a ficção científica. Com um detalhe importante: subitamente, essa vida “interior” das máquinas integrava o mundo dos videojogos como fundamental elemento dramático. Assim se travava uma guerra digital que passou de geração em geração, com o filho do herói do primeiro filme a protagonizar Tron: o Legado (2010), de Joseph Kosinski. Agora, também por efeito de moda, surgem as convulsões metafísicas da Inteligência Artificial.Como? Através da personagem de Ares (exatamente: com o nome do deus grego da guerra e da coragem), um guerreiro mitológico ao serviço do seu criador, Julian Dillinger, dono de um poderoso conglomerado tecnológico. Dito de outro modo: interpretado por Jared Leto (também produtor do filme), Ares tem a figura de um super-herói com fato luminoso e capacete metálico, mas não deixa de ser... um programa de computador. Resumindo as esquemáticas peripéciais: Jullian quer controlar o mundo, até que Ares se revolta e não lhe obedece...De Super-Mário a Lara Croft, passando por Final Fantasy, os videojogos têm motivado um cinema apostado em “repetir” no grande ecrã as peripécias e os sobressaltos narrativos das experiências caseiras com os computadores pessoais. O que conduz a um equilíbrio instável de que este Tron: Ares é, uma vez mais, sintomático: mesmo em alguns deslumbrantes momentos visuais (sobretudo com as motos das personagens que vivem dentro dos computadores), persiste um esquematismo dramático que vai enfraquecendo os resultados espectaculares.Música & telediscosTron: Ares tenta mesmo reativar as memórias do primeiro Tron através do regresso (que também acontecia no segundo filme) de Jeff Bridges a assumir a personagem de Kevin Flynn, o génio digital com quem se iniciaram todas estas atribulações. Mas o problema de fundo não está tanto na construção de uma determinada filiação dramática, mas sim na conceção, porventura na invenção, de um novo sistema narrativo.Nesta perspetiva, o aspeto mais curioso de Tron: Ares acaba por ser o trabalho de composição musical de Trent Reznor e Atticus Ross, desta vez assumindo a sua condição de banda, isto é, assinando como Nine Inch Nails. Dir-se-ia que o poder sonoro do seu “rock industrial” gera alguns breves momentos vibrantes, como se fossem verdadeiros telediscos no interior da história que está a ser contada.