Imagine um estendal em que, expostos ao sol e ao vento, não estão lençóis brancos ou vaporosos vestidos, mas sardinhas, safios, raias e o mais que o mar dê. A prática ancestral, que assegura a secagem e conservação do pescado, como tanta coisa nas nossas vidas, parece ter sido introduzida na Península Ibérica pelos romanos e foi preservada na sua essência até meados do século XX, quando o recurso a frigoríficos e arcas congeladoras tornaram o método obsoleto. Em Lisboa, as lojas da Rua do Arsenal que comercializavam o pitéu foram-se especializando cada vez mais no bacalhau, em detrimento das outras espécies. Mas diz quem sabe, neste processo de modernização, corria-se o risco de perder para sempre o gosto de um petisco sem igual..Para contrariar esta tendência, o produtor de televisão João Barba e a associação cultural ONDA dispuseram-se a recuperar o método de secagem de peixe em Peniche, uma das cidades piscatórias com mais tradições nesta prática. Tudo começou há perto de três anos, quando João se mudou para aqui, movido pela necessidade de apoiar os pais. Descobriu uma qualidade de vida de que já não se lembrava: "Vim há três anos, mas já devia ter vindo há 15. Aqui vou à praça, compro tomate e sabe mesmo a tomate. E o peixe sabe mesmo a mar. Era algo de que não me lembrava durante uma vida inteira em Lisboa.".Nesta redescoberta de uma nova maneira de viver (e comer), João juntou-se à associação ONDA com o objetivo de estimular a cultura típica de Peniche. E à baila veio a tradição do peixe seco, "que não pode ser servido no restaurante nem há no supermercado, embora se venda em algumas bancas no mercado do peixe, porque não há regulamentação para o setor. Há para o bacalhau, que também é seco, mas não para as outras espécies." É uma prática que não é legal nem deixa de o ser. "É simplesmente tolerada", diz..O método artesanal de secagem resume-se a três ou quatro passos: Primeiro amanha-se o peixe, em seguida lava-se em duas águas diferentes e salga-se, dependendo a quantidade de sal da grossura do peixe. É então que é posto a secar, ao sol e ao vento. Para garantir que tudo se faz de acordo com os critérios modernos de segurança alimentar, o passo seguinte foi envolver no objetivo várias entidades como o MARE - Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, a Escola Superior de Turismo de Peniche e a Docapesca..Chamado a participar, o investigador Wilson Fernandes conta como tudo aconteceu: "O que nós fizemos em laboratório foi caracterizar, do ponto de vista físico-químico e sensorialmente, o pescado conservado pelo método ancestral que as peixeiras de Peniche usam há séculos com o que sobra da venda. Verificámos que é um peixe saudável, que apresenta boas características de conservação." Seguiram-se vários ensaios em laboratório, "tentando reproduzir aquele processo com técnicas mais modernas e atuais, voltámos a analisar e percebemos que não há grandes diferenças em relação ao produzido pelas peixeiras de forma tradicional." Wilson, que recomenda o petisco, considera que não há espécies menos adequadas para este método: "A maior parte das espécies adapta-se bem até porque tradicionalmente as peixeiras usam todo o pescado que sobra da venda e que está em condições de ser consumido." Aparecem assim os mais tradicionais carapau e sardinha, mas também sargo, douradas, robalos, polvos, litões. Há mesmo quem jure que estes conseguem substituir com proveito o bacalhau, tão amado pelos portugueses..Entre as muitas vantagens deste método está, como sublinha João Barba, o seu papel no combate ao desperdício: "Permite usar peixe que esteve dois dias em banca e que está em ótimo estado." Por outro lado, torna possível o consumo de espécies muito espinhosas como o safio, já que este processo consegue secar até 80% das espinhas..Para já, esta proposta está a fazer o seu caminho. Para além de uma grande cadeia de supermercados ter demonstrado o seu interesse, os alunos da Escola de Turismo de Peniche que frequentam a disciplina de Inovação Gastronómica já apresentaram várias receitas em que a "estrela" é justamente o peixe seco. Mas há também um filme de animação realizado por Rui Barba e uma exposição fotográfica de Bárbara Marques. A próxima etapa será chegar às mesas dos melhores restaurantes locais. O lema é "Um alimento do futuro com 2000 anos de experiência.".dnot@dn.pt