Andrew Scott, um Ripley feito por medida.
 Andrew Scott, um Ripley feito por medida.

Tom Ripley: o fascínio continua

A personagem mais celebrada da literatura de Patricia Highsmith está de volta ao pequeno ecrã, numa nova adaptação. Com Andrew Scott no papel principal, a série 'Ripley', de Steven Zaillian, explora a escuridão da alma humana através de um preto e branco carregado. Em estreia na Netflix.  
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Alain Delon, Dennis Hopper, Matt Damon e John Malkovich. À lista dos atores mais sonantes que interpretaram Tom Ripley junta-se agora Andrew Scott, o irlandês que se destacou recentemente no belíssimo drama de Andrew Haigh, Desconhecidos (disponível no Disney+), e cujos papéis secundários em diversos filmes e produções televisivas já faziam antever uma subida de patamar a qualquer momento. Papéis como o de Jim Moriarty, esse arqui-inimigo do Sherlock de Benedict Cumberbatch na série homónima do herói detetive, que será dos mais memoráveis exemplos de um vilão em pleno controlo do jogo performativo, com um jeito de criança gozona que mede forças com a criança prodígio. Que melhor escola para preparar um futuro Tom Ripley? Seja qual for o veredito sobre a série em estreia na Netflix, o seu protagonista estava escrito nas estrelas. Esta é a hora de Andrew Scott. 

Criada e realizada por Steven Zaillian - argumentista de filmes de Martin Scorsese (Gangs de Nova Iorque, O Irlandês) e vencedor de um Óscar por A Lista de Schindler, de Steven Spielberg -, Ripley surge quase como uma peça minimalista no panorama do streaming. Oito episódios que adaptam o primeiro livro da famosa série de Patricia Highsmith, O Talentoso Mr. Ripley, fixando os movimentos da personagem, muito mais do que a sua questão romanesca. Nesse sentido, pode dizer-se que o que ganha aqui contornos nítidos é um estudo de perfil, meticuloso e confiante o suficiente para nos deixar a sós, durante largos minutos, com Tom Ripley e as suas artimanhas, entre balcões, assinaturas falsas, cartas, telefonemas, passaportes e viagens. 

Quem conhece a história, já sabe que o acontecimento que muda a vida de Ripley é uma viagem a Itália. Estamos no início dos Anos 60 e este americano é recrutado pelo pai rico de um conhecido - um vago conhecido -, Dickie Greenleaf (Johnny Flynn), para o trazer de volta a casa. Ao que parece, o rapaz encantou-se com a dolce vita europeia, e estando bem acompanhado pela namorada, Marge Sherwood (Dakota Fanning), não tenciona fazer as malas tão cedo para agradar aos pais... Por Ripley, tudo bem! Não há pressa. O falso conhecido torna-se estranhamente íntimo de Dickie, e passa a ter um quarto na sua villa italiana: daí até ao assassinato desse filho abastado é um saltinho. Ou talvez não. 

A série de Zaillian faz pose de quem tem todo o vagar. Não mostra o mesmo interesse na densidade narrativa que mostra na arquitetura dos gestos de Ripley/Scott, na forma como a sua postura cria desconforto e desconfiança nos outros, sem que o comprometa: ele consegue livrar-se das situações tensas com a expressão certa no momento certo. É, por isso, uma série cheia de olhares incomodativos, que valem por mil palavras, com um humor que estala quando menos se espera e um tom sombrio que valoriza o “mecanismo” das cenas. Este, desde logo, auxiliado pela fotografia a preto e branco, que sublinha o requinte de Itália, o estilo policial e a beleza dos detalhes. 

Acima de tudo, trata-se de um ângulo concentrado na solidão do protagonista - como seria de esperar, com aqueles deliciosos ensaios ao espelho, em que Ripley assume a atitude corporal da sua futura vítima, sem ser particularmente cuidadoso a esconder a ânsia de vestir a roupa e a pele de Dickie. Portanto, à pergunta se é possível renovar o fascínio por uma personagem tão revisitada, a resposta só pode ser positiva. Highsmith concebeu uma figura na qual projetamos o nosso lado negro, os instintos calados, e Zaillian, como outros realizadores, foi à procura da invisível linha sedutora que salta da página e põe a imaginação a dançar, antes de ganhar vida na tela.  

Uma visão inspiradora

Se é certo que Tom Ripley é uma personagem literária, a sua origem está relacionada com uma imagem concreta que se reteve na memória da autora: em 1951, estava Highsmith em Positano a descansar, longe das suas preocupações nos Estados Unidos, quando avistou da varanda do hotel “um jovem solitário de calções e sandálias, com uma toalha sobre o ombro, a caminhar pela praia, da direita para a esquerda. Ele olhava para baixo... Pude apenas ver que o cabelo era liso e escuro”, escreveu num ensaio intitulado Scene of the Crime. E continua assim: “Havia nele um ar pensativo, talvez mal-estar. E por que razão estava sozinho? Não parecia o tipo atlético que daria um mergulho frio sozinho àquela hora da manhã. Zangou-se com alguém? O que estaria a pensar? Nunca mais o vi. Nem escrevi nada sobre ele no meu caderno. O que é que havia para dizer? Parecia-se com milhares de outros turistas americanos na Europa naquele verão. Tive a sensação de que era americano.” 

Face ao novo Ripley, e intencionalmente ou não, esta descrição corresponde ao Tom de Andrew Scott. O cabelo liso e escuro, uma certa malaise no semblante (com os olhos muito abertos), um ar de turista americano e um ponto de interrogação sobre a cabeça. Mais do que o fio da história, o espectador segue o fio dos pensamentos. Quais? Os que conjetura diante daquele corpo feito página em branco. 

Não tendo escrito na altura sobre a estranheza que lhe causou a silhueta do homem na praia, Highsmith registou depois nos seus Diários e Cadernos (publicados cá pela Relógio D’Água): “O que previ que um dia faria já estou a fazer, precisamente neste livro (Tom Ripley): mostrar o triunfo inequívoco do mal sobre o bem e rejubilar com isso. Vou fazer com que os meus leitores rejubilem também. Assim como nos sonhos, o inconsciente é sempre anterior ao consciente, ou à realidade.” Ora, o convite de Steven Zaillian passa por esta escuridão jubilosa. E não tem problemas em ser sinistro. 


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