No princípio era o privilégio. Personagens que se relacionavam dentro de uma lógica de poder, com os funcionários de um resort de luxo presos a máscaras de simpatia ao serviço de um grupo heterogéneo de americanos brancos endinheirados. The White Lotus 2 não deixa de contemplar, de novo, os dois lados, mas o cerne da questão já não está aí. Neste segundo fôlego da premiada série de Mike White há uma atmosfera assombrada pelo sexo que carrega notas mais profundas que a anterior: ainda dá para rir, sim, os diálogos continuam afinados, sim, mas o mal-estar de umas férias na Sicília não é o mesmo mal-estar que atravessou o cenário paradisíaco do Havai. A região italiana onde agora se passa a ação tem a sua própria história, que White não ignora, e por toda a parte há rostos de cerâmica que "vigiam" os dramas e pulsões ocultas dos novos hóspedes do resort fictício..Tal como a primeira temporada, The White Lotus 2 arranca com um vislumbre do fim das férias e o apontamento sinistro de um cadáver não identificado que lança o enigma sobre toda a semana anterior. Já sabemos que vai haver sangue (condimento essencial), e para descobrir o que terá acontecido recua-se ao início dessa semana. Ficamos então a conhecer os mais recentes espécimes ricos, cuja psicologia se presta à lupa de White, começando por dois casais que formam um quarteto: um empresário (Theo James) e a mulher (Meghann Fahy), dona de casa, que convidaram um velho amigo dele de faculdade (Will Sharpe), tímido novo rico, e a mulher (Aubrey Plaza), advogada, para um descanso partilhado. Os primeiros exibem o amor de uma forma enjoativa, orgulham-se de não acompanhar notícias - acham que não vale a pena a "obsessão" com o estado do mundo -, e ela nem sequer tem a certeza se votou nas últimas eleições; os segundos são a antítese dessa postura de vida superficial, mas têm uma intimidade mais fria, e ela tende a comparar-se constantemente com os outros, em jeito de competição. Seja como for, ninguém aqui é apenas um "tipo" de pessoa. Há camadas por revelar..Depois deparamos com um trio masculino de diferentes gerações. Os Di Grasso, avô (F. Murray Abraham), filho (Michael Imperioli) e neto (Adam DiMarco), estão na Sicília para apanhar os ares das suas origens, numa frustrada viagem de família de que os elementos femininos se demarcaram: com um só telefonema da personagem de Imperioli, percebemos, pela raiva justificada do outro lado da linha, que há um quadro crónico de infidelidades. Não é por acaso que este executivo de Hollywood é o primeiro hóspede a recorrer aos serviços de uma trabalhadora do sexo que passa o tempo a rondar o resort com uma amiga... De resto, em termos de virilidade, o clã italo-americano tem muito que se lhe diga. Desde o avô que não perde uma ocasião para namoriscar as jovens garçonetes, de forma embaraçosa, ao neto que não quer seguir as suas pisadas (e muito menos as do pai), adotando uma atitude pró-feminista - numa visita aos locais onde foi rodada a parte siciliana d"O Padrinho, ele aproveita para questionar os seus velhos sobre a nostalgia da masculinidade que os leva a considerar esse filme de Coppola o melhor de sempre..O rapaz, por sua vez, encanta-se pela assistente (Haley Lu Richardson) da única personagem que vem da primeira temporada: Tanya, a herdeira narcísica e tragicómica que deu a Jennifer Coolidge o seu mais proeminente papel, tornando-se uma inequívoca favorita; agora serve sobretudo como recurso de humor para aliviar a densidade da trama. O painel completa-se (ou quase) com as referidas jovens locais que despertam muita atividade sexual nos quartos, e a gerente do resort, desta vez menos central na história mas também com ingredientes sugestivos na personalidade..Mike White, sempre responsável pela escrita e realização, continua a primar pela habilidade e acutilância com que gere o comportamento destes homens e mulheres num cenário de férias ameaçadas, preservando o mistério sobre o teor da ameaça. Desta feita, é no seio das relações íntimas e familiares que o criador aposta todas as fichas, conseguindo tocar uma série de pontos nevrálgicos e infundir discussões morais sem martelar temas. Com a ajuda de um elenco que assume cada nuance expressiva e linha de diálogo aguçado, The White Lotus 2 tem tudo para repetir a proeza do original, a partir de variações dentro de uma estrutura à prova de bala. Por outras palavras: um belo naco de produção televisiva que eclipsa uma certa sátira social com presunção de cinema vencedora da Palma de Ouro (leia-se: Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund)..Importa lembrar que, quando criou a série, em plena pandemia, White vendeu a ideia à HBO como algo sem perspetiva de prolongamento. A produção adequava-se à então circunstância de quarentena com uma história passada num único local. Foi o sucesso desse conceito de férias desconfortáveis, abrilhantado por uma escrita sagaz, que levou a este segundo momento, bem aconchegado pelo destaque nos Emmys (venceu 10, incluindo melhor minissérie ou série de antologia, realização e argumento). E a verdade é esta: White encontrou uma fórmula sua, perfeitamente calibrada, sem descansar à sombra dos clichés que costumam gerar personagens formatadas, qual paisagem humana já muito vista..A propósito de tédio, num dos primeiros episódios de The White Lotus 2, a assistente de Tanya - arrastada para aquele destino turístico por puro capricho da patroa - confessa-se profundamente aborrecida com o mundo que a rodeia, dizendo que já não há mistério. Um curioso comentário que pode servir para descrever a série pelo lado inverso: o mundo que White nos apresenta não tem maneira de nos aborrecer. Há perversão com fartura e até um toque de dolce vita amarga..dnot@dn.pt