Um ator queixa-se do látex na cara, depois de ter passado quatro horas na cadeira de maquilhagem. Pelo auricular de um membro da produção surge um falso alerta de que o estúdio está em chamas. Há ainda assistentes que aproveitam as curtas pausas para dormir na secretária, um realizador que tenta preservar alguma gravidade de porte no meio de uma rodagem anedótica e, enfim, no geral, a imagem de marca são pessoas a falarem de problemas e soluções criativas enquanto caminham pelo caos dos bastidores. “Roma está a arder, mas não há nada com que tenhamos de nos preocupar”, diz alguém, com cara de pânico reprimido... Eis The Franchise, a nova série de comédia da Max (disponível a partir de segunda-feira), que junta como criadores o cineasta Sam Mendes e os versados argumentistas de séries, e não só, Jon Brown e Armando Iannucci – este último, uma espécie de instituição da sátira, que nos deu The Thick of It (2005-2012), Veep (2002-2019) e o filme A Morte de Estaline (2017). .Na forma como a câmara navega a confusão do ambiente de estúdio poderá estar o toque de Mendes, que já no drama de guerra 1917 ensaiara a impressão de um único plano-sequência para nos fazer sentir a densidade do tempo, naquele caso, tal como foi sentido no terreno pelos soldados da Primeira Guerra Mundial. Mas é definitivamente a Iannucci (com a ajuda de Brown, já seu colaborador, cujo currículo inclui uns quantos episódios de Succession) que se associa a balbúrdia concertada de The Franchise, uma certa maneira dinâmica e veloz de conceber a comédia. Na mesa-redonda virtual onde o DN participou, a atriz Aya Cash, que interpreta uma produtora na série, concorda com essa preponderância: “Acho que aquilo que Iannucci cria lindamente é este humor rápido, com personagens meio excêntricas, mas sempre baseados numa realidade muito específica, que nos atrai. E ao entrar na série, ganhei também a noção de que tudo parte de um sentido de conjunto: ele tem uma grande capacidade de gerir um ensemble.” .A proposta dos oito episódios passa então pela exclusiva atmosfera de rodagem de um filme de super-heróis, cuja equipa a cada dia se depara com novos desafios, enquanto o orçamento evapora. Da idiotice do product placement (publicidade indireta) à famosa frase de Martin Scorsese condenatória deste regime de filmes e franchises (que provoca uma crise e regeneração filosófica num episódio), passando por uma hipotética visita de Christopher Nolan ao estúdio, pelas questões do uso de CGI e pelos atores conceituados que se veem diminuídos em figurinos patéticas, The Franchise é um poço de vinhetas simbólicas do nosso tempo, à procura da verdade de um retrato humano. .À esquerda, o super-herói de Billy Magnussen..É esse que Billy Magnussen, na pele do inseguro e egocêntrico ator que faz de super-herói, realça na conversa com a imprensa internacional: “Agrada-me fazer parte de uma série que mostra os verdadeiros heróis da indústria do cinema. Porque geralmente anda tudo só à volta das estrelas, ignorando-se o protagonismo dos membros da equipa que, de facto, fazem a coisa acontecer: eles chegam antes de toda a gente e saem depois de toda a gente ter ido embora... Sinto, por isso, um certo orgulho de que se mostre aqui o lado da indústria que quase nunca se vê.” .À frente e atrás da câmara.O ser invisível que ganha aqui especial protagonismo é, no fim de contas, o assistente de realização interpretado por Himesh Patel, um “everything man” que precisa de estar com as antenas ligadas a toda a hora, e cujas técnicas de relaxamento consistem em exercícios de respiração com cigarros elétricos, ao volante, a caminho do trabalho... Se for preciso dar apoio emocional a um ator, lá está ele também para o serviço, enquanto apaga outros fogos no seu giro pelos cenários e rulotes. .Quando o DN lhe pergunta o que terá sido mais peculiar nesta experiência, Patel fala do esbatimento de fronteiras: “Para mim foi mesmo a forma como as coisas ficaram indiscerníveis entre o que era a realidade e o que supostamente se estava a fazer para a série. Por exemplo, há uma cena em que o Billy [Magnussen] está preso por fios, no ar, e pede para o baixarem porque não sente as pernas... Ora ninguém fez nada porque aquela era mesmo a deixa dele; o problema é que não estava a representar! Foi este o nível de meta-absurdo que imperou ali.” .Magnussen assina por baixo: “Sim, às vezes nem sabíamos se estávamos a ser filmados! A sensação foi mesmo a de estar num set o tempo todo, sem fazer muita distinção entre o que acontecia à frente ou atrás da câmara. Um verdadeiro mundo de intercâmbio.” E não é preciso ir mais longe, nota: “Nós estamos aqui enfiados numa sala estranha a falar com vocês via Zoom. É este o absurdo da indústria!” (atente-se nos créditos finais da série, que trazem entrevistas rápidas, a parodiar este sistema promocional dos estúdios). .Já Aya Cash, ao reiterar a ideia de que The Franchise é um retrato rigoroso do constante tumulto, e do ridículo que acaba por se esconder nas costuras quotidianas de uma rodagem desta natureza, sublinha as consequências do stress palpável, que se mistura com a agilidade do humor: “A maioria das pessoas que trabalham nestes ambientes deve lidar com questões de tensão arterial... Está mesmo provado que os assistentes de realização têm uma tendência acrescida para desenvolver problemas de saúde”, alerta. .Celebrar pela via do sarcasmo.Seja como for, o que se pretende é fazer o espectador descontrair pela linha da comédia mais afiada, com doses soltas de disparate a mostrar que não há método de trabalho que resista à aleatoriedade das vicissitudes industriais e criativas. Não é suposto, porém, rir da loucura de tudo isto numa atitude de desprezo tout court. Antes pelo contrário. “Ao estarmos a satirizar a máquina da indústria estamos também a celebrá-la, a celebrar as pessoas que nela trabalham. Como diz a minha personagem, ‘quando fazemos filmes destes em bom, não há nada melhor’. Eu concordo com isso: quando este género de filmes é feito nos termos do melhor possível, é fantástico”, defende Patel. .Cash considera igualmente essencial o aspeto da celebração. Até porque The Franchise nunca deixa o lado solar desaparecer dentro da comédia negra: “Para satirizar, tens de amar um bocadinho o objeto da sátira. Esta vem, de facto, de um lugar de amor”. E, mais uma vez, prevalece o espírito de Armando Iannucci, sempre colorido, sempre desarrumado (embora não tanto como nos primeiros tempos), aqui a encontrar-se com um certo sentido de crise que não é estranho ao realizador de Beleza Americana.