"The Bikeriders". Rebeldes sem causa
Na autobiografia Canções que a Minha Mãe Me Ensinou, Marlon Brando recorda este momento de The Wild One (1953): “No filme há uma cena em que alguém pergunta à personagem que interpretei, Johnny, contra o que é que eu estava revoltado, e respondo: ‘Que é que tens a ver com isso?’ Nenhum de nós, que tomámos parte no filme, imaginou alguma vez que ele poderia instigar ou encorajar a revolta juvenil”. Pois bem, essa revolta não foi só uma manifestação de vestuário, com as t-shirts, jeans e blusões de cabedal a tornarem-se símbolos de rebeldia. O momento que Brando cita, da sua personificação de um jovem motard, é o mesmo que em The Bikeriders inspira Tom Hardy - cuja personagem também se chama Johnny - a fundar um clube de motociclistas. Ele está a vê-lo na televisão e reage aos modos desse outro Johnny como quem teve uma epifania frouxa, pensando distraidamente “porque não?”.
Há anos que Jeff Nichols queria realizar um filme sobre os clubes de motociclismo dos anos 1960. Uma ideia estimulada pelo contacto com o livro homónimo de Danny Lyon, trabalho exemplar de fotojornalismo moderno, que, através de fotografias e entrevistas, documenta a existência do Chicago Outlaws Motorcycle Club como um gangue a meio caminho entre o romantismo e o abandono. E, desejo concretizado, eis que Nichols também foi mais ou menos por aí: o seu The Bikeriders é uma crónica tão próxima do fabrico da nostalgia, correspondente ao fim de uma era, como da secura emocional daqueles que encarnam uma imagem de rebeldia.
Mais do que o “Goodfellas dos motards”, que será a comparação fácil, tendo em conta a evolução do clube para um perfil de gangsterismo, o que Nichols alcançou aqui foi uma certa qualidade do indizível que acompanha a mudança das coisas. A propósito disso, Brando, na mesma página em que fala de The Wild One e dos grupos de cidadãos comuns que são os motociclistas, refere que estes “se podem espontaneamente transformar em bandos predatórios mediante uma espécie de instinto de horda fraternal que os leva a abolir quaisquer princípios morais que possuam.” Justamente, quem nos relata essa transformação em The Bikeriders é uma voz feminina, Kathy (Jodie Comer com um sotaque a 100 à hora), namorada de um dos membros do clube fundado por Johnny/Tom Hardy, que tem a perspicácia ideal para oferecer ao espectador a estranheza de ser parte de um grupo destes.
Guardar distância
E assim, The Bikeriders não se presta à ficção dramática mais tradicional. Com Mike Faist (que vimos recentemente em Challengers) no papel do próprio Danny Lyon, que anda atrás de Kathy para todo o lado, de microfone e gravador na mão, vamos seguindo o fio destas entrevistas que funcionam como um mecanismo de distância justa. Quer dizer, à medida que ela conta como se apaixonou por Benny (Austin Butler, já lá vou...), e como o clube chamado Vandals se deixou consumir pela ausência de valores, percebemos que Nichols não está interessado no drama como fonte de comoção. Kathy, com o seu jeito desembaraçado de identificar o vazio destes homens - de alguma maneira preenchido pelo som do motor das suas Harley-Davidson -, é a película de discernimento que evita o excesso de proximidade daqueles corpos em crescendo violento.
Talvez por isso nunca cheguemos a conhecer realmente o Benny de Austin Butler (e deixem lá o Elvis sossegado), esse misto de James Dean e Marlon Brando, que surge na tela como o ser de carisma inefável, um ensaio de melancolia estilosa ao serviço do próprio lustre de memória que define The Bikeriders. E aí, mais do que Tudo Bons Rapazes ou O Padrinho, o efeito conseguido por Jeff Nichols assemelha-se a um Era Uma Vez em... Hollywood: trata-se de captar a atmosfera do fim de um tempo, uma forma de existir entre o som e a imagem, que produz um estudo do desamparo americano. Não são filmes exatamente comparáveis nos resultados, mas há uma beleza ferida que persiste.
De The Bikeriders retém-se sobretudo o modo como Nichols desenha o poder de atração de Benny/Butler com poucos diálogos: é vê-lo de plantão em frente à casa de Kathy, à espera que o marido dela ganhe juízo e perceba que não vale a pena rivalizar com um homem de mota, ou a envergar o casaco de ganga dos Vandals, enquanto bebe um whisky (no estabelecimento de Will Oldham, bonito cameo), como se vestisse um bilhete de identidade. Quanto ao Johnny de Tom Hardy, o líder sem nada na cabeça, que apesar de tudo tem neurónios suficientes para reconhecer a fibra de Benny (tornando-se para ele uma figura paternal), deixa-nos com a sensação de que este é o tipo de personagem que veio para ficar marcada no rosto de um ator surrado. O que não significa que estejamos a apreciá-lo negativamente. Confirma-se é que o “boneco” abrutalhado serve bem o intuito colecionador de figuras que faz de The Bikeriders um filme com espírito de álbum de recordações. Um western na estrada filmado com o requinte de um cineasta apaixonado pela iconografia do seu tema.