Tarantino para aficionados e amantes de BD

Tarantino para aficionados e amantes de BD

Depois do romance Era Uma Vez em Hollywood, novelização do filme homónimo, e da espécie de autobiografia cinéfila que é Cinema Speculation, um dos mais populares cineastas americanos volta em formato literário. Quentin por Tarantino, de Amazing Ameziane, é a novela gráfica obrigatória.
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Enquanto se espera pelo anunciado derradeiro filme de Quentin Tarantino, The Movie Critic, a internet e o mercado livreiro vão-nos ajustando, volta e meia, ao seu comprimento de onda, como que a manter viva a conversa à volta da sua obra e daquela bem conhecida cinefilia de videoclube. Agora é a vez de uma banda desenhada, robusta e colorida, com assinatura do francês Amazing Ameziane, que nos chega numa edição da ASA: Quentin por Tarantino não são apenas 240 páginas de imersão em detalhes de um universo peculiar, mas um absoluto deleite de grafismo que acompanha a “música” própria de um realizador, enquanto narra o seu percurso por capítulos, na primeira pessoa. Da infância pouco regrada até Era Uma Vez em... Hollywood, penúltimo título de uma filmografia que se quer encerrar no seu décimo ato, o livro do autor da “ciné trilogy” composta também por Martin Scorsese e Don Coppola não ignora nenhum traço de uma linguagem pessoal que se tornou vertigem pop. Bem-vindos ao admirável mundo tarantiniano!

Propondo então uma estrutura minimamente ordenada, que segue a evolução do sucesso do cineasta americano, Ameziane (nome que por cá só conhecíamos da versão novela gráfica do clássico 1984, editada pela Cavalo de Ferro) faz deliciosos desvios e apartes, para que as questões do chamado Tarantino Cinematic Universe (TCU), as suas pequenas polémicas e outras curiosidades cimentem uma visão tão geral quanto específica. Por vezes, ultra específica. Um pouco a imitar a lógica do próprio Tarantino em relação às suas personagens. A saber, o realizador escreve sempre muito mais sobre elas, dá-lhes mais contexto de vida do aquilo que se vê no grande ecrã. E aqui trata-se igualmente de dar à personagem de Tarantino uma unidade para além da imagem pública. Não é aquele tipo de literatura “para totós”, que enche estantes de livrarias, com um apanhado de ideias básicas sobre um autor e piscadelas de olho a conceitos demasiado populares – o que Ameziane faz admiravelmente é captar o vigor expressivo da sua personagem, baseando-se, para isso, numa diversa bibliografia. Ainda assim, o autor avisa: “Esta novela gráfica é uma obra de ficção”. Bem... em parte será, mas a sua essência é verídica.

A infância adulta

Dos tópicos mais interessantes da personalidade de Tarantino, a sua infância surge aqui numa estética roubada a Calvin and Hobbes, de Bill Watterson (consta na tal bibliografia), que retrata esses anos de educação pouco convencional, passados com a mãe, Connie, e durante algum tempo também com um padrasto, Curt, resumindo a génese do seu amor ao cinema na possibilidade exclusiva que teve de ver filmes para adultos com uma frequência anormal. Daí a tendência para os palavrões...

Na obra de não-ficção Cinema Speculation, publicada pouco depois do original francês deste Quentin por Tarantino, o próprio realizador escreve, com a sua típica vaidade cómica, sobre o privilégio de uma infância nestes termos: “Uma vez que tinha permissão para ver coisas que eram proibidas aos outros miúdos, eu parecia sofisticado aos olhos dos meus colegas. E porque andava a ver os filmes mais estimulantes da maior era do cinema na história de Hollywood, eles estavam certos: eu era, de facto, o mais sofisticado.” Palavras de quem, umas quantas páginas mais à frente, sublinha que os anos formativos da década de 70 se definem como o princípio e fim daquilo que tem feito ao longo da carreira: “De uma forma ou de outra, passei a vida inteira, desde que vejo e faço filmes, a tentar recriar a experiência de ver um filme de Jim Brown novinho em folha, num sábado à noite, num cinema de negros, em 1972”.

Pode dizer-se que esta nota de intensidade está espalhada por toda a sugestão visual da presente banda desenhada. O que nos leva, ainda na fase formativa, ao videoclube Video Archives, que deu a Tarantino um novo contexto para dilatar a sua paixão cinéfila, já com muito conhecimento adquirido desde tenra idade, tornando-se um vendedor talentoso, nutrido de bons conselhos para espectadores leigos – não é por acaso que criou em 2022, juntamente com Roger Avary, um podcast intitulado “Video Archives”, a evocar os tempos dessa loja em Manhattan Beach, onde não se conhecia o politicamente correto na hora de recomendar os clássicos e favoritos nas estantes repletas de fitas VHS. Para quem não se recorda, Avary é o coargumentista de Pulp Fiction (1994), que venceu um Óscar por esse crédito partilhado...

O primeiro filme

Antes do icónico Pulp Fiction, e da história do argumento terminado por Tarantino em Amesterdão, Ameziane expõe as dificuldades que o realizador teve em começar a carreira dentro dos padrões que imaginou. O caso mais complexo é o do argumento de True Romance, que depois de muitas voltas acabou realizado por Tony Scott (em português chamou-se Amor à Queima-Roupa). Mas há também um primeiro teste de realização, My Best Friend’s Birthday (1987), que acabou consumido pelas chamas num incêndio no laboratório de película, salvando-se uns escassos minutos de filme. E neste capítulo dos entraves insere-se ainda a exigência que o produtor Harvey Weinstein quis fazer, em nome da Miramax, sobre Cães Danados (1992), esse título com honras de inauguração de uma obra. Pois bem: Weinstein tentou que Tarantino cortasse a mais memorável cena de tortura do filme. O resultado dessa tentativa ficou bem à vista, e qualquer espectador se recordará: há um corte sangrento, sim, mas não da cena. A película manteve-se intacta...

Talvez este finca-pé possa ser interpretado como a atitude que permitiu ao realizador manter o controlo sobre o seu trabalho nos filmes posteriores. Afinal, a Miramax foi a casa mãe de quase toda a sua obra, incluindo aventuras à parte com o amigo Robert Rodriguez, como 4 Quartos (1995) e Aberto Até de Madrugada (1996). O projeto Grindhouse (2007) já foi do tempo da Weinstein Company.

Naturalmente, sendo uma novela gráfica de estilo hiperativo, que consegue ir aos recantos de tudo e mais alguma coisa, o monstro Weinstein e as descobertas da era #MeToo não escapam à pena de Ameziane, que reúne as declarações da “personagem” Tarantino sobre o assunto. Um assunto sombrio, que na cabeça do cineasta americano se mistura com outros episódios, como o do acidente de carro de Uma Thurman durante a rodagem de Kill Bill, tido como a sua grande consternação ao longo destas páginas.

O quilate dos atores

Entre as maravilhas dos desenhos de Quentin por Tarantino, salta também à vista a homenagem aos principais intérpretes deste universo. A começar por Harvey Keitel, “o Charlie de Mean Streets” que ajudou a avançar com a produção de Cães Danados, pelo simples facto de ter dito sim – palavrinha mágica – ao convite para entrar no filme. Tornou-se, assim, uma espécie de padrinho da obra de Tarantino.

Depois vem Samuel L. Jackson (“O Sam nasceu para dar voz às minhas falas”), que a partir de Pulp Fiction se converteu no rosto e identidade deste cinema, por razões óbvias: as suas narrações e monólogos escritos pelo enfant terrible têm o estatuto de arte pop. E o que dizer de Christoph Waltz em Sacanas Sem Lei (2009)? A sua tour de force na sequência inicial do filme é a preferida de Tarantino, em toda a sua obra. Entenda-se: porque o texto do realizador-argumentista é perfeito e o ator soube entranhar cada fibra das palavras.

Uma Thurman, claro, Leonardo DiCaprio, Brad Pitt e Kurt Russell são outros dos contemplados, mas os casos especiais chamam-se John Travolta e Pam Grier. O primeiro, já longe dos tempos áureos de Febre de Sábado à Noite (1977) e Grease (1978), ganhou uma segunda vida com Pulp Fiction, e Pam Grier, enquanto ídolo feminino da juventude de Tarantino, silhueta suprema da blaxploitation, terá ganho a eternidade com o papel de protagonista em Jackie Brown (1997).

Mixórdia de temáticas

Dispersos um pouco por todos os capítulos estão interlúdios que aprofundam algumas referências, temas notórios ou projetos ainda não concretizados de Quentin Tarantino. Por exemplo, toda a história por trás da inspiração de Kill Bill, que envolve o filme Thriller: A Cruel Picture (Viagem ao Inferno, 1973) e as influências criativas do seu realizador, o sueco Bo Arne Vibenius; o fetiche por pés e violência; a tara pelo western; um terceiro volume para Kill Bill; ou um livro de aventuras que ele gostava de escrever sobre a personagem de Hans Landa (interpretada por Waltz em Sacanas Sem Lei), sendo aqui um detetive nazi.

Como fã assumido de Bruce Lee, Amazing Ameziane dedica ainda três páginas à controvérsia em torno do tratamento dessa personagem real de Era Uma Vez em... Hollywood. Reduzindo ao mínimo as ilustrações e dando evidente destaque ao texto corrido, o autor, sempre na voz de Tarantino, tenta esclarecer, de uma vez por todas, o equívoco gerado pela cena de luta entre Bruce e o duplo Cliff Booth (Brad Pitt). Porque, acima de tudo, o que se defende no livro é a verdade 24 vezes por segundo. O cinema que vive na película, e não a mentira que circula no mundo digital. Sinta-se estas páginas como fotogramas de uma mente arrebatada pela cinefilia que se pode agarrar com as mãos.

Quentin por Tarantino
Amazing Ameziane
Edições ASA
248 páginas
Diário de Notícias
www.dn.pt