Cillian Murphy: ser ou não ser professor.
Cillian Murphy: ser ou não ser professor.

'Steve'. Na solidão de Cillian Murphy

Assumindo as funções de intérprete e produtor, Cillian Murphy protagoniza Steve, sobre uma escola que acolhe jovens com sérios problemas de integração familiar e social — apenas na Netflix.
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Nascido a 25 de maio de 1976 em Douglas, um subúrbio da cidade irlandesa de Cork, Cillian Murphy é um ator cujo talento não depende da gestão de qualquer “imagem de marca”. Assim, depois do Óscar e do BAFTA ganhos com a sua composição no monumental Oppenheimer (2023), de Christopher Nolan, prosseguiu a carreira através de pequenas produções, de raiz irlandesa, evitando qualquer “repetição” do filme que, afinal, lhe trouxe uma imensa projeção internacional. Assim volta a acontecer com Steve (Netflix), do belga Tim Mielants, um drama vivido no ambiente tenso de uma escola que acolhe jovens com sérios problemas de integração familiar e social.

O empenho de Murphy na concretização de Steve reflete-se no facto de surgir na dupla condição de intérprete e produtor, aliás repetindo o que já acontecera em Pequenas Coisas como Estas (2024), também sob a direção de Mielants, um retrato íntimo das convulsões de uma família na Irlanda de 1985. A ação de Steve acontece cerca de uma década mais tarde e tem como base um argumento de Max Porter, inspirado no seu romance Shy (editado entre nós com chancela Elsinore).

Shy é a alcunha de um rapaz, interpretado pelo excelente Jay Lycurgo, cuja inadaptação se exprime através de comportamentos particularmente violentos, no limite desafiando a sua própria sobrevivência. O dia a dia da escola é um pesadelo de conflitos físicos e verbais que se alimentam uns aos outros, obrigando o corpo docente, castigado por um cada vez menor apoio estatal, a desesperadas tarefas de apaziguamento. A situação complica-se com a presença de uma equipa de televisão que se limita a procurar imagens que garantam a reprodução de clichés previamente assumidos...

Porter e Mielants terão mudado o título porque, em boa verdade, a adaptação evolui no sentido de tratar Steve, o professor interpretado por Murphy, como figura central. Ele é o polo de um ziguezague em que todas as formas de estabilização emocional se vão diluindo (mesmo se o filme não abdica de procurar os sinais, ainda que frágeis, de alguma esperança). Por um lado, Steve e os seus pares sentem-se cada vez mais impotentes para lidar com problemas bem diferentes das fórmulas moralistas que o oportunismo televisivo quer “ilustrar”; por outro lado, a dependência do álcool transforma Steve no protagonista de uma solidão radical.

É essa solidão que Murphy interpreta com a discreta genialidade de um ator realmente fora de série. Sustentado por um olhar que não podemos deixar de aproximar da tradição do realismo britânico, este é, de facto, um filme que merecia ser exibido nas salas escuras — seja como for, não deixa de ser um pequeno grande acontecimento na Netflix.

Carla Ribeiro (DN/de)

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