Steve Martin gosta de já não ser o que era
No primeiro episódio de Homicídios ao Domicílio, a recente série nova-iorquina de gema que trouxe Steve Martin de volta ao pequeno ecrã (após uma década praticamente afastado), a sua personagem, Charles-Haden Savage, ator outrora muito famoso por uma série policial chamada Brazzos, é parado no meio da rua por um jovem que passeia com a namorada e começa por dizer, muito entusiasmado: “Espere aí, você não é...?” Charles, sorridente, completa a frase. E o jovem prossegue: “Em criança, via essa série com o meu pai. Era a preferida dele!” Um início de conversa simpático, que se desvia rapidamente para a atual condição de saúde do senhor que era o verdadeiro fã de Brazzos, e acaba com o casal a pedir-lhe para tirar uma foto. Ou melhor, para que o famoso lhes tire uma foto a eles os dois...
Para lá da comédia de situação, esta é uma cena que não esquecemos pelo significado implícito: Charles, no fundo, é o próprio Martin, uma das figuras mais marcantes da cultura americana do final dos anos 1970, que foi ganhando distância humorística em relação às novas gerações, até se tornar mesmo esse “ator preferido do papá”, que ficou preso numa caixinha de memórias.
Steve! (Martin), o documentário em duas partes que acaba de chegar à Apple TV+, dá conta, precisamente, das duas personalidades, duas fases (na verdade, três, mas já lá vamos) que definem o percurso do comediante e ator. A saber, um início de carreira custoso e persistente na comédia stand-up, que contrariava o estilo político da época – eram os tempos da guerra do Vietname –, e um momento presente em que a maturidade serenou toda a narrativa dos altos e baixos de uma vida, dando lugar a uma espécie de doçura amena. As palavras de Martin ao canal CBS, há dias, confirmam-no: “Tenho esta teoria de que, à medida que envelhecemos, ou nos tornamos no nosso pior ou no nosso melhor. Eu sinto que me tornei no melhor de mim mesmo – e consigo ver outras pessoas que se foram tornando na pior versão de si próprias. Tornaram-se mais hostis. E essa é uma linha bastante clara para mim.”
Realizado por Morgan Neville, documentarista oscarizado (mais conhecido nestas bandas pelo retrato de Orson Welles em Amar-me-ão Quando Eu Morrer e Anthony Bourdain: O Eterno Viajante), Steve! é um olhar bipartido, que procura transmitir a mudança ocorrida com Martin, desde o rapaz que trabalhou na Disneylândia, primeiro a vender guias do parque e depois na Magic Shop lá do sítio, ao homem que sentiu tarde a alegria da paternidade e encontrou na ideia de família, lá está, um terceiro ato para si mesmo (depois do stand-up e do cinema).
A primeira metade do documentário assenta exclusivamente em material de arquivo, usando algumas gravações em voz off que comentam o tipo de animal de palco que era Steve Martin, como diz Jerry Seinfeld, “o comediante mais idolatrado” do final da década de 70, cuja ascensão se fez por caminhos tortuosos, entre um curso de Filosofia, o ilusionismo, uma genuína pose disparatada e a performance musical com o banjo, entre outros detalhes e adereços com o seu quê de avant-garde. Já a segunda parte, apresentando uma abordagem muito diferente, assume o contacto direto com o homem de 78 anos. Logo a abrir, estamos na cozinha com Martin, ele a fazer ovos escalfados com torradas e a introduzir-nos o capítulo maduro da sua vida, onde se inclui o atual parceiro da comédia, Martin Short (com quem faz Homicídios ao Domicílio), e um casamento feliz, depois de anos de solidão – esse estado que se pode ler em várias cenas dos filmes que escreveu e representou nos anos 1980-90, tendo começado a carreira no cinema com o sucesso O Tonto (1979), realizado por Carl Reiner.
Filmes: en passant
O mais curioso e inesperado desta segunda metade documental de Steve! passa justamente pela forma como a questão do cinema não tem a ênfase que se poderia antecipar. Martin fala com pesar sobre o fracasso de Dinheiro do Céu (1981), de Herbert Ross, atravessa ao de leve momentos de Roxanne (1987) e Viver e Amar em Los Angeles (1991), mas estas e outras recordações da indústria e do show business passam por aqui sempre na medida em que reconstituem algo da personalidade dele naquela altura. Não há cá grandes exegeses sobre O Pai da Noiva ou A Pantera Cor-de-Rosa. Troca-se isso por tranquilos passeios de bicicleta em Central Park, conversas com Seinfeld, Tina Fey, Eric Idle e Diane Keaton (entre outros), ensaios divertidos com Martin Short, o trabalho à volta de uma banda-desenhada biográfica, Number One is Walking (saiu em 2022), e uma atenção particular ao hobby mais sério do ator: as galerias de arte e a sua coleção privada. É mesmo um caso sério.
Dir-se-ia que o equilíbrio do filme duplo de Neville está neste contraste entre o jovem comediante endiabrado e o homem de família que se apurou na escrita e contemplação (vejam-se os textos para a New Yorker, revista através da qual conheceu a esposa), tendo reconsiderado o seu afastamento das lides do ecrã com uma das melhores séries cómicas dos últimos anos. E a popularidade americana de Homicídios ao Domicílio prova não só que Martin continua a ser uma presença estimada, mas também que a sua pena humorística se mantém ágil. É simplesmente prazeroso entrar um pouco no seu mundo... ainda que se imponham limites inteligentes ao nível de intimidade.
Steve! junta-se, assim, a um bom catálogo de documentários sobre personalidades, com selo da Apple TV+, que tem somado títulos em tempos recentes. Destaque para Still: A História de Michael J. Fox, de Davis Guggenheim, em torno do sucesso fenomenal e da doença de Parkinson do protagonista de Regresso ao Futuro, e para O Túnel de Pombos, de Errol Morris, onde a vida do escritor John le Carré é passada pelo filtro do thriller de espionagem, sem esquecer Sidney, de Reginald Hudlin, e Louis Armstrong’s Black & Blues, de Sacha Jenkins – o primeiro sobre o ator Sidney Poitier, o segundo sobre o ícone do jazz, ambas histórias essenciais da América negra. São olhares que, para além de fixarem memória, procuram captar a verdade humana contida nos retratos biográficos. Viagens que valem a pena.