Shirley MacLaine aos 90. Deus (ainda) sabe quanto ela amou 

Shirley MacLaine aos 90. Deus (ainda) sabe quanto ela amou 

Uma das referências vivas de Hollywood, a atriz de 'O Apartamento e Deus Sabe Quanto Amei' celebra hoje 90 anos, com quase 70 de carreira. Ainda nada está acabado. 
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O cabelo curto, em tons de ruivo, os olhos azuis-claros, entre a tristeza e a infinita doçura, uma nota de inocência e outra de perversidade a digladiarem-se no rosto como raramente se viu, de forma tão cristalina, em Hollywood. Foi com esta imagem de marca que Shirley MacLaine imprimiu na história do cinema americano um certo desregramento bem-vindo nos modos. “Tudo nela é desordenado, desconchavado, maria-rapaz”, escreveu João Bénard da Costa, que via nessa feliz ausência de harmonia o primor artístico, tecendo-lhe elogios rasgados: “Tudo quanto se pode dizer sobre o que é uma atriz no cinema se lhe aplica”; “é difícil não gostar, e muito, desse coração melodioso e com culpas, e desse rosto tão, tão bonito”. Nascida a 24 de abril de 1934 (Richmond, Virginia), a mais humana das atrizes completa 90 anos, e continua a deixar-se ver no pequeno e no grande ecrã. 

Filha de uma professora de teatro, e irmã mais velha do ator e realizador Warren Beatty, Shirley MacLaine aprendeu ballet em criança e, já em Nova Iorque, começou por ser corista na Broadway, pouco antes de ter substituído a segunda protagonista do musical The Pajama Game, em 1954. Foi aí que o produtor Hal Wallis lhe pôs a vista em cima e a contratou para a Paramount Pictures: na sua estreia em cinema seria dirigida por Alfred Hitchcock (O Terceiro Tiro) e não esperou muito pela primeira nomeação ao Óscar (Deus Sabe Quanto Amei, de Vincente Minnelli, 1959). Antes disso ainda mostraria brevemente os seus dotes de comédia em Pintores e Raparigas (1955), de Frank Tashlin, ao lado de Jerry Lewis e Dean Martin, sendo a década de 60 que a viu florescer num registo entre o humor e o drama (O Apartamento Irma la Douce, de Billy Wilder, A Infame Mentira, de William Wyler, What a Way to Go!, de J. Lee Thompson, Sete Vezes Mulher, de Vittorio De Sica, etc.). 

Os anos 1970, menos produtivos em termos de cinema – quando se tornou demasiado “cara” para os estúdios –, corresponderam a um tempo mais reflexivo, em que escreveu um livro de memórias, Don’t Fall Off the Mountain (o primeiro de vários), regressando também aos palcos e fazendo televisão. É dessa altura a série Shirley’s World, onde interpreta uma fotojornalista, e o documentário, realizado pela própria, The Other Half of the Sky: A China Memoir (1975), nomeado ao Óscar na respetiva categoria documental. 

Foram os eighties, por sua vez, que lhe trouxeram alguma justiça. Em 1984 venceu finalmente um Óscar de melhor atriz (ao fim de seis nomeações), por Laços de Ternura, de James L. Brooks, e depois dos divertidos papéis em Flores de Aço (1989), de Herbert Ross, e Recordações de Hollywood (1990), de Mike Nichols, até à data, tem mantido uma relação descontraída, quer com o cinema, quer com as séries – dos últimos anos, é digna de nota a sua personagem no filme In Memoriam (2017), de Mark Pellington, uma mulher de negócios reformada que quer supervisionar previamente a escrita do seu obituário, sendo também deliciosa a sua passagem pela segunda temporada de Homicídios ao Domicílio. 

O que fica muito evidente quando se observa a evolução de Shirley MacLaine na grande tela é a progressiva transformação do seu humor açucarado e sexy num perfil ora rabugento ora dolorido, que nunca perdeu, porém, aquele toque “desarrumado” nos gestos e na expressão. Para narrar a essência dessa mudança ao longo do tempo, percorremos aqui alguns dos seus melhores papéis, sem deixar de fazer uma menção especial a dois títulos que ficaram fora da lista, por limitação numérica: Sweet Charity (1969), de Bob Fosse, e Os Abutres Têm Fome (1970), de Don Siegel. O primeiro, um musical baseado no argumento de As Noites de Cabíria, de Fellini; o segundo, um western em que MacLaine interpreta uma freira em apuros no México do século XIX, salva pelo cowboy Clint Eastwood. Um must! 

Nove filmes para 90 velas

O TERCEIRO TIRO (1955) 

Começar a carreira sob a direção de Alfred Hitchcock não é para todos, e Shirley MacLaine teve essa sorte na fabulosa peça de humor negro que é (no título original) The Trouble With Harry. Hitchcock adorava o romance homónimo de Jack Trevor Story e adaptou-o com uma afinação tremenda. O que é que acontece aqui? Há um cadáver no meio da floresta, que vai sendo objeto de variadas manifestações de indiferença por parte das personagens que com ele se cruzam, até que se forma um quarteto, ou melhor, dois pares românticos à volta do “problema” daquele corpo – no espaço de 24 horas é enterrado e exumado ao sabor dos raciocínios hesitantes, e o outono nunca pareceu tão belo... “Você é a coisa mais maravilhosa e linda que alguma vez vi. Gostava de pintá-la”, diz John Forsythe à jovem mulher interpretada por MacLaine (que foi a primeira a identificar o cadáver de Harry). E assim se cumprimenta a debutante cujo cabelo ruivo combina com as folhas das árvores naquele outono Technicolor e contrasta com as heroínas hitchcockianas, tradicionalmente loiras. 

DEUS SABE QUANTO AMEI (1958)  

Um dos mais esplêndidos melodramas do cinema americano, que recebeu um adequadíssimo título português, Some Came Running é o filme da absoluta revelação de MacLaine, a prova máxima de que o mundano e o sublime se podem tocar através de uma certa maneira de expor os sentimentos. A sua maneira. Ela é Ginnie Moorehead, uma “rapariga perdida” que se apaixona por um veterano do exército, o cínico Dave Hirsh de Frank Sinatra, seguindo-o no autocarro até à sua cidade natal, onde este, já sóbrio da noite anterior, a vai descartando na mesma medida em que o amor dela cresce – e cresce ainda que Ginnie esteja ciente de não se encontrar ao nível da mulher intelectual (Martha Hyer) que constitui o interesse amoroso dele. Vincente Minnelli filma tudo isto com a elegância de um musical subterrâneo, em que a figura dela, suplicando para ser vista como humana, fica a ressoar nas palavras de uma doçura trágica. 

O APARTAMENTO (1960) 

Outro dos clássicos da atriz, assinado por Billy Wilder, O Apartamento confirma a totalidade das emoções contidas na sua expressão. Ela que consegue traduzir a mais profunda tristeza (ninguém esquece o diálogo do espelho de bolso partido, que “a faz parecer tal e qual como se sente”) e aquele charme de meiguice travessa. A sua personagem é uma operadora de elevador, Fran Kubelik, por quem Bud (Jack Lemmon), trabalhador de uma empresa de seguros, cai de amores. Estamos em Manhattan, com paragens no décimo nono andar de um edifício que espelha a frieza do mundo moderno, e estas duas alminhas solitárias vão ter de resolver as suas próprias conjunturas: ele é o tipo que empresta o apartamento para casos extraconjugais de superiores hierárquicos, esperando que isso lhe traga alguma vantagem laboral; ela é a amante do chefe... 

A INFAME MENTIRA (1961) 

É dos filmes mais esquecidos do percurso de MacLaine e uma das suas interpretações mais dilacerantes, a partir de uma peça de Lillian Hellman, The Children’s Hour. Contracenando com Audrey Hepburn (que tinha acabado de fazer Boneca de Luxo), ambas interpretam Martha e Karen, duas amigas responsáveis por um pequeno internato para raparigas, que a certa altura é alvo de difamação por uma das crianças, uma aluna mimada que lança o boato de um relacionamento lésbico entre as professoras... Claro que é uma mentira malvada e com consequências imediatas, mas Martha/MacLaine terá algo a confessar à colega, que lhe custa mais do que o fecho do internato. Um brilhante dueto dirigido por William Wyler.  

IRMA LA DOUCE (1963) 

O segundo encontro com Jack Lemmon no grande ecrã, de novo sob o comando de Billy Wilder, faz-se a cores bem vivas, abraçando a comédia sem reservas. No papel de uma trabalhadora do sexo – a beleza de collants verdes que dá título ao filme –, ela volta a acelerar o batimento cardíaco dele, que desta feita é um ex-polícia convertido em proxeneta. Entenda-se: o homem está tão apaixonado que se disfarça de cliente rico único, com alegadas limitações sexuais, para garantir que Irma La Douce não dorme com mais ninguém. Como é que ele arranja o dinheiro? Essa é a outra parte hilariante deste conto que planta a ternura no contexto mais improvável de uma Paris de farsa e burlesco. 

WHAT A WAY TO GO! (1964) 

O filme onde Shirley MacLaine usa uma estonteante cabeleira cor-de-rosa. Não será só por isso que se recorda esta comédia de J. Lee Thompson, mas a verdade é que o guarda-roupa e a excentricidade do design de produção (nomeados para Óscar) contribuem bastante para a memória visual de What a Way to Go!, puro champagne para uma tarde amena. O enredo é simples: em visita a um psiquiatra, a protagonista endinheirada conta a história da sua vida num longo flashback que revela a “sobrevivência em série” a maridos que a foram deixando cumulativamente mais rica. Quem é que conseguiria reunir num só filme Paul Newman, Dean Martin, Robert Mitchum e Gene Kelly? É um feito, mas eles só estão de passagem num programa de festas que cobre MacLaine de figurinos fenomenais.  

A GRANDE DECISÃO (1977) 

Depois da fase das comédias, concentrada nos Anos 60, é na década seguinte que MacLaine começa a explorar a fundo a sua vertente dramática, associada a um corpo na meia-idade. A Grande Decisão (título original: The Turning Point), de Herbert Ross, será porventura o filme principal dessa transição, onde a vemos como uma mulher que guarda a amargura de uma decisão do passado, quando trocou o futuro como bailarina profissional pela maternidade e vida de casada. Uma mágoa que vem ao de cima quando a filha, também uma bailarina talentosa em ascensão, a leva ao contacto com uma amiga e rival, que se tornou estrela do ballet – a amiga é interpretada por Anne Bancroft, e as duas juntas, no seu momento de catarse, criam um pequeno milagre. Não admira a nomeação dupla nos Óscares, para melhor atriz. 

LAÇOS DE TERNURA (1983) 

Eis então o filme que lhe valeu, por fim, o Óscar. Arranca em tom de comédia familiar, mas acaba por ganhar avultada intensidade de drama, conforme a história da relação entre uma mãe obsessiva e a filha que tenta escapar ao seu domínio se transforma numa crónica agridoce sobre a busca pelo amor. De MacLaine a Debra Winger, as protagonistas, passando por Jack Nicholson, na pele do sedutor vizinho do lado, há um extraordinário trabalho de nuances de realismo que nos conduzem suave e firmemente para as lágrimas... Ainda que o realizador James L. Brooks não menospreze o poder humorístico de Nicholson, quando este se dirige à heroína madura: “Não sei o que há em ti que desperta o diabrete em mim”. E ela é, de facto, uma peça complexa de design humano. 

FLORES DE AÇO (1989) 

O coração de Flores de Aço é um salão de beleza do Louisiana onde circulam alegrias e angústias misturadas com laca, cera e secadores. Um modo de vida comunitário que se mede pelo ritmo das quadras e festividades, com os laços femininos na linha da frente. Mais uma vez realizado por Herbert Ross, é verdade que este Steel Magnolias serviu de rampa de lançamento para uma jovem Julia Roberts e é uma obra coral que junta Sally Field, Dolly Parton, Daryl Hannah, Olympia Dukakis e Shirley MacLaine, sem nenhuma personagem estar acima das outras. Mas o filme não seria a mesma coisa se faltasse a resmunguice e maus modos da Ouiser Boudreaux de MacLaine, que traz o vendaval consigo sempre que chega a algum lugar. Quando numa festa lhe trazem um velho conhecido, que diz que ela está fisicamente igual ao que era na juventude, a resposta surge de boca suja: “Já não sou tão amorosa como costumava ser”. Uma piscadela de olho à Shirley do outro tempo. 

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