A ideia da Cabine de Leitura é de Carlos Moura-Carvalho. 
A ideia da Cabine de Leitura é de Carlos Moura-Carvalho. Carlos Pimentel/Global Imagens

"Severino de Carvalho não foi um anarquista das insurreições e das bombas. Foi antes um anarquista da escrita"

Carlos Moura-Carvalho, antigo diretor de Cultura da Câmara de Lisboa e autor da ideia Cabine de Leitura (antigas cabines telefónicas a servirem de minibibliotecas), volta a lançar livro sobre bisavô.
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Como surgiu a curiosidade sobre o seu bisavô Severino de Carvalho, nascido em 1867, tema deste 'Um Homem Livre'? Havia histórias familiares sobre ele?

Desde sempre ouvi histórias na família sobre este meu bisavô. Desde o facto de ter abdicado de ser o notário que sucederia ao conhecido notário Jorge Camelier, por morte deste, pois desagradavam-lhe as funções de destaque de notário, tendo por isso cedido o seu lugar ao irmão, António Tavares de Carvalho, e preferindo ficar apenas a colaborar como “ajudante” de notário. Ao facto de anotar em bilhetes de elétrico palavras diferentes que ouvia na rua. Mas o que procurei fazer neste livro foi mais que uma invocação familiar, uma reconstituição de um tempo histórico muito próprio, procurando revisitar uma corrente ideológica sobre a qual muito há ainda por esclarecer, conduzida pelo caso particular da vida de um homem. Não me interessavam tanto os episódios saborosos de vida, mas sim o fervilhar político que se viveu entre 1887 e 1918, altura em que Severino foi um ativo militante da filosofia anarquista, procurando fazer uma síntese de uma ideologia generosa na sua utopia, mas talvez impossível de concretizar, no plano da dura realidade. 

Era um anarquista nada bombástico, como chega a dizer no livro. O seu bisavô envolveu nos jornais, na educação, no teatro. Nunca houve tentação, que saiba, de enveredar por um anarquismo violento?

Não me parece. De tudo o que li e me disseram os meus tios, netos do Severino de Carvalho, o meu bisavô, dando corpo ao seu ideário, não foi um anarquista das insurreições e das bombas. Foi antes um anarquista da escrita, das livrarias, das editoras, dos grupos de estudos, das revistas, dos jornais, das traduções de livros, (a sua tradução de O Germinal de Émile Zola em 1903 é a segunda até então), da ideia da educação concretizada no impulso da Escola Oficina nº1, e da libertação pela Arte, sobretudo com a criação do célebre Teatro Livre, que durou apenas seis anos, mas que em termos de influência nunca mais deixou de durar. O meu bisavô e aquele grupo a que pertenceu acreditavam na emergência de uma ordem baseada na liberdade individual conseguida através da informação, da instrução e do conhecimento.

Fala muito de Severino de Carvalho no período final da monarquia/início da república. Mas fiquei curioso: ele que como notário trabalhou até muito tarde, como foi o envolvimento político ao longo da vida?

O meu bisavô sempre se considerou um “não político”, que embora partilhasse ideias anarquistas, preferiu uma intervenção sóbria e sólida, a discussões sem bússola, guardando o essencial da sua intervenção para o campo da educação e da cultura. No final da vida, continuou a escrever em revistas e jornais e dedicou-se a recolher em livros, revistas e na própria linguagem popular, vocábulos estranhos a todos os dicionários, mas que pelo seu uso entravam com significado na língua portuguesa, tendo mesmo, em edição da tipografia Couto Martins, publicado em 1946 o livro Palavras Fora do Dicionário, onde descrevia centenas de novas palavras, cujo significado já se encontrava oficializado pelos costumes.

Severino de Carvalho por Molina Sanchéz (1945)
Severino de Carvalho por Molina Sanchéz (1945)

O anarquismo encarnado a dado momento pelo seu bisavô deixou legado na sociedade portuguesa?

O meu bisavô e aquele grupo de idealistas foram submersos por uma onda de fundo que temperou o futuro do homem novo e muitas das iniciativas generosas e de vanguarda postas em marcha, tiveram alguns inspirados sucessores como, entre outros. as atividades do Centro Psicopedagógico da Fundação Calouste Gulbenkian, que na década de 70 do século XX, retomaram e deram grande impulso a conceitos como a Educação Nova ou a Educação pela Arte, ou ainda hoje o Colégio da Torre. que adota uma abordagem pedagógica centrada na Teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner, que reconhece que cada aluno possui diferentes formas de aprender e expressar conhecimento, promovendo um ensino personalizado que valoriza a criatividade e a expressão artística, ou ainda, o Centro Escolar de Santiago, em Aveiro, que desenvolveu um projeto muito interessante denominado “EmocionArte”, com os alunos do Pré-escolar e 1º ciclo ao longo do ano letivo, que culminou na apresentação de um teatro de marionetas. E, claro, mais recentemente, destacar o Plano Nacional das Artes, que estou em crer começa a criar as bases para uma mudança do ensino.

O bisneto sente ter algo deste bisavô anarquista?

Muitas das ideias defendidas pelos anarquistas do princípio do século XX foram enterradas na voragem das mudanças, muitas delas em marcha à ré, e na direção de um presente que continua a manter os mesmos defeitos públicos de então. Dir-se-ia que o “karma" da insuficiência é o mesmo.  Ainda hoje há suborçamentação na cultura, um insuficiente apoio às artes por parte do Estado, reduzida implementação de modelos de financiamento inovadores, (uma nova e eficaz Lei do Mecenato ficou mais uma vez por cumprir), escassa valorização dos criadores e da propriedade intelectual, ausência de reconhecimento da  cultura como grande recurso estratégico para o progresso económico e social. Nesse aspecto sinto uma identificação com o meu bisavô. E procuro, à minha medida, também eu, defender a cultura como elemento absolutamente determinante na mudança da sociedade, para inverter um paradigma em que há demasiado sistema, demasiado aparelho, demasiado oportunismo, pouca abertura à mudança, à melhoria, à descoberta. E acredito que cada um de nós deve, à sua medida, contribuir para mudar esse paradigma com sentido de justiça, liberdade e humanismo, acreditando que a cultura e a educação são mesmo transformadores. 

A primeira edição deste livro, em 2018, sobre o seu bisavó esteve depois envolvida numa polémica sobre eventual plágio. Está tudo resolvido nesta segunda edição?

A primeira edição do livro esgotou ao fim de poucos meses e anos mais tarde esteve envolvida numa polémica, quando eu estava como Diretor Municipal de Cultura. Embora a questão que originou a polémica não tivesse sido diretamente da minha responsabilidade, e o contexto em que surgiu tivesse um evidente enquadramento político, como autor do livro assumi o erro. Não podia fazer outra coisa. Mantive curiosidade pela ação dos anarquistas do começo do século XX, continuando a investigar e a procurar novas referências, e decidi, algum tempo depois, fazer esta 2.ª edição revista e aumentada, com novos capítulos, designadamente, sobre a posição tomada pelo meu bisavô Severino e outros anarquistas em relação à Primeira Guerra Mundial. Esta 2.ª edição constitui uma oportunidade de resolver as questões que geraram a tal polémica, corrigir omissões importantes e erros involuntários, ajudando a compreender melhor vários aspectos do livro, nomeadamente, o papel que os intelectuais anarquistas tiveram na nossa História do começo da República.

A capa de "Um Homem Livre", de Carlos Moura-Carvalho.
A capa de "Um Homem Livre", de Carlos Moura-Carvalho.

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