Ser uma escritora famosa por matar um terrorista
Depois de vários prémios, entre os quais o da União Europeia para a Literatura, e de traduções para mais de vinte países, David Machado (n.1978) chega às livrarias com um novo romance: Os Dias do Ruído. Um livro com uma capa que transmite tranquilidade mas cujo interior é tudo menos isso, pois a história tem como base a morte de um terrorista pela protagonista. Um ato que acontece em Paris, cenário alargado a muitos outros países, sem esquecer um elo nacional que liga a narrativa a Portugal, mais concretamente a Peniche, terra natal de Laura. A narrativa nunca amortece e, conforme avança, o leitor é surpreendido pelos acontecimentos que decorrem em função da situação que a catapulta para uma fama mundial.
Não é por acaso que a protagonista viaja pelo mundo em múltiplas apresentações e entrevistas a propósito do livro que escreveu sobre o que lhe aconteceu e que mantém essa referência ao país de origem, garante David Machado: “Para qualquer ser humano, essa ligação a casa e às origens é muito importante.” Ressalva que esse sentimento se torna mais forte para os portugueses: “Há a questão da 'saudade', claro. E do facto de, historicamente, sermos um povo acostumado a viajar, a emigrar e a partir em busca de melhores oportunidades.” É o caso do próprio autor, como refere: “Viajo bastante e nessas andanças já conheci muitos portugueses espalhados pelo mundo e todos falam de Portugal e de casa com um afeto emocionado. A Laura não é diferente. Por causa de tudo o que ela viveu - ter sido repórter de guerra, o divórcio, ter matado o terrorista, a fama. Talvez essa ligação a casa seja a única coisa certa na sua vida, a única fração da sua identidade da qual ela se sente segura.”
Se Os Dias do Ruído mantêm essa particularidade do elo nacional, o leitor confronta-se também com o outro lado da moeda, o mundo atual, mais globalizado do que nunca, sustentado nas redes sociais que estão bem presentes na elaboração da história. Pergunta-se a David Machado se hoje é possível fugir a esse cenário da Internet e o que responde é que “não é impossível contar uma história sem incluir as redes sociais, mesmo que estas façam uma parte importante daquilo que os seres humanos são hoje”. O autor acrescenta uma realidade: “Claro que a nossa identidade sempre foi em certa medida definida a partir da forma como os outros nos veem, o que torna inevitável uma construção daquilo que somos em público. No caso das redes sociais, estas exacerbam tudo ao ponto de, em muitos casos, essa construção se tornar quase completamente uma ficção. Daí que do ponto de vista da literatura, essa manipulação da identidade seja muito fascinante.” Conclui: “No mundo virtual, todos somos ficcionistas, escrevendo e reescrevendo, inventando, editando, não apenas a nossa vida, mas também as dos outros, através de comentários, «gostos» ou filtros.”
A interação entre as redes sociais e a verdadeira identidade de cada um reflete-se em muito na protagonista, que acaba por se confrontar com construções inesperadas sobre si, situação que se pode entender numa confissão que faz: “Como é que o mundo inteiro já sabe quem eu sou se eu própria não sei?” Questiona-se se será ingenuidade da protagonista ou uma espécie de arrependimento pelo que posta nas redes sociais: “As redes sociais providenciam sentenças, juízos e narrativas à velocidade da luz. No mundo virtual não existem dúvidas ou sequer hesitações, não há espaço nem tempo para se ensaiarem teses e teorias. A certeza, mesmo que sem fundamento ou irrefletida, será sempre mais celebrada pelo algoritmo. Laura matou um homem, um terrorista, e, por causa disso, é imediatamente idolatrada e admirada por milhões de pessoas em todo o planeta, a sua vida passa a ser definida à luz desse acontecimento. Porém, dentro dela, esse acontecimento é demasiado avassalador, cheio de complexidades e contradições, uma equação que nunca dará conta certa. Por outras palavras, aquilo que somos nas redes sociais será sempre uma personagem bidimensional carecendo da nossa real profundidade e complexidade e por isso tão fácil de ser julgada.”
O cenário deste livro não exigiu uma grande investigação para ser credível, pois basta estar atento às notícias e participar nas redes sociais. Pergunta-se e o autor concorda: “Houve alguma investigação, mas não foi determinante. Todos vivemos nas redes sociais, mesmo as pessoas que não têm conta nas redes sociais.” Assegura que nos dias de hoje é impossível não se estar consciente sobre esta dimensão do mundo, porque “existe em toda a parte”. Daí que justifique essa presença total: “As redes sociais vieram satisfazer uma das maiores necessidades dos seres humanos: a de vermos os outros e de sermos vistos pelos outros. É algo irresistível. E todos os dias testemunhamos a forma como esse fenómeno assume proporções colossais não apenas na sociedade mas também no interior de cada pessoa.”
Quanto à investigação necessária houve, no entanto, uma parte fundamental: “Naquilo que está mais distante do que sou: o jornalismo de guerra, por exemplo. Que é outro mundo no qual as emoções, os dilemas e as narrativas alcançam níveis de intensidade extremos, aparentemente simples mas incrivelmente complexos. Para mim, como romancista, nada é tão interessante como a ideia de que não existe uma verdade, mas sim uma multiplicidade de verdades, complementares e contraditórias ou defeituosas. A imperfeição do ser humano é sempre mais fascinante.”
No caso da exigência da ficção, David Machado aceita que a sua protagonista manipula as redes sociais para aumentar o sucesso do seu livro. Explica: “Não há ninguém no mundo que não manipule as redes sociais em proveito próprio. No fundo, todos queremos a mesma coisa: que gostem de nós. Talvez seja verdade que em Laura essa carência seja mais profunda. Mas ainda assim, todos nós apresentamos nas redes sociais uma versão do que somos com a esperança de que ela agrade aos outros. Curiosamente, começámos a fazer com as nossas vidas pessoais o que as empresas já faziam em busca de lucro: tratamo-nos como produtos. E já não é necessário estarmos a vender nada concreto, pois podemos apenas vender o nosso rosto, o nosso corpo, os nossos gostos e desejos.”
Será a descrição da vida de nómada da escritora inspirada na própria experiência do autor? “Nos últimos vinte anos, por causa dos livros que escrevi, tive a sorte de viajar bastante dentro e fora de Portugal. Participei em conferências, aulas em universidades e escolas, sessões em bibliotecas, feiras do livro e festivais literários, encontros com editores, tradutores, livreiros e agentes. Conheci muitas pessoas que admirava ou que passei a admirar. Conheci lugares onde, de outra forma, nunca teria ido. Tudo isso foi importante para escrever sobre a Laura no seu périplo internacional”, responde. No entanto, salvaguarda as comparações: “A minha experiência não é a dela: não tenho a atenção do planeta inteiro como ela tem por ter morto um homem e depois ter escrito um livro sobre isso. Ainda assim, mesmo à minha escala, é muito fácil perceber de que maneira essa atenção constante pode mudar a forma como nos posicionamos no mundo”.
Todo o romance é escrito no feminino. Como foi para um escritor inserir-se na pele de uma mulher é uma questão que merece ser feita. David Machado considera ser difícil responder a esta pergunta e que a própria protagonista se questiona sobre isso no romance: “Em teoria, não deveria ser diferente de escrever na voz de um homem; somos todos seres humanos, feitos da mesma matéria finita, com as mesmas emoções e as mesmas imperfeições. Contudo, na prática não é assim e, apesar de todos os avanços sociais, em vários aspetos e desde muito cedo, a experiência de vida de uma mulher difere bastante da de um homem. Felizmente, nos últimos anos isso tornou-se mais evidente e a reflexão sobre o assunto dá-nos oportunidade de fazermos algo para reduzir essas diferenças ou, pelo menos, para estarmos conscientes de que existem. Mas, talvez dependa da história que se quer contar. Neste caso, eu queria mesmo pensar e escrever acerca da experiência de uma mulher nos dias de hoje. No romance, a Laura está a (tentar) escrever um livro sobre mulheres heroínas e o que isso significa. Creio que, no fundo, era também esse livro que eu estava a (tentar) escrever.”
O local, e a situação, que torna Laura famosa é Paris. É uma cidade que já não consegue escapar à violência do ódio? Para o autor, houve um acontecimento determinante e uma coincidência entre a realidade e Os dias do Ruído: “As primeiras páginas do romance foram escritas há uns seis anos ou sete anos, no seguimento do atentado no Bataclan e, antes, na redação do Charlie Hebdo. Nessa altura, a premissa que tinha era já a história de uma mulher que se torna famosa após matar um terrorista. Por causa daqueles acontecimentos tão recentes, fazia sentido que se passasse em Paris, como se através de Laura pudesse fazer alguma espécie de justiça, um pouco ao jeito do que o Tarantino fez com o Inglourious Basterds, ou depois com o Once Upon A Time In Hollywood. Quando há cerca de dois anos voltei a pegar no romance, apercebi-me de que a violência em Paris não só continuava como se manifestava sob outras formas. Nessa altura, senti que uma história envolvendo um ataque terrorista em Paris parecia quase um cliché e ponderei mudar a cidade. Não mudei por causa da tal intenção de dar à Laura a oportunidade de fazer justiça.”
OS DIAS DO RUÍDO
David Machado
D.Quixote
260 páginas
Outras novidades literárias
MEMÓRIA DE UMA ÁFRICA
O segredo principal deste livro tem a cor do título do romance, mas não fica por aqui a fórmula literária que o autor, o jornalista Nicolau Santos, utilizou para seduzir os leitores numa história que se situa na maior parte em Angola e num passado que ainda ecoa nos ouvidos portugueses. Apesar de ser o seu primeiro romance, a estrutura da narrativa, os diálogos escorreitos, a História passada a pente fino e os acontecimentos que balizam as vidas dos personagens, são certeiros.
AMARELO TANGO
Nicolau Santos
Oficina do Livro
284 páginas
MEMÓRIA DE UMA PEREGRINAÇÃO
É o segundo romance de Bruno Paixão, desta vez num cenário mais distante e que questiona sobre uma tese: “Imagine um Jesus nascido nesta era, criança curiosa e filha de mãe solteira, praticante de uma fé que se afigura ambígua”. O percurso de vida e de perguntas vai ser longo, confrontando o leitor com as suas certezas e impondo dúvidas, ultrapassando dunas e vilarejos, até questionando assuntos de física quântica, entre muitas outras interrogações.
OS TRINTA NOMES DE DEUS
Bruno Paixão
Porto Editora
333 páginas
MEMÓRIA DE UM ANTEPASSADO
Após vários livros em diversos registos, Fernando Palouro das Neves avança sobre um tema histórico preciso: o auto-de-fé de 29 de setembro de 1747. O protagonista da narrativa é Martinho Pessoa, um antepassado do poeta, que sofre com a violência da Inquisição e vê destruída a sua vida por essa instituição. O relato do que acontece ao próprio, bem como a outros, e o estado de sítio em que muitos viveram durante séculos, pode ser sintetizado nesta frase: “Sabia desde Abril que ia ser queimado.”
O TRIBUNAL DAS ALMAS
Fernando Palouro das Neves
Guerra & Paz
287 páginas