Um verão no País Basco pode ser o motivo perfeito para espreitar a interioridade de um menino, Aitor, que quer ser chamado por outro nome: Lucía. Sem que a família se aperceba logo do que está a acontecer, esta criança de oito anos interpretada por Sofía Otero - a mais jovem premiada do Festival de Berlim - vai navegando num meio rural onde as pessoas desconhecidas a tomam por uma menina... E ela não os corrige. É mesmo assim que se sente. Não há enganos: apenas uma oportunidade de ouro para explorar a ambiguidade de género garantida pela própria língua basca..Primeira longa-metragem de Estibaliz Urresola Solaguren, 20 000 Espécies de Abelhas é um gesto terno de aproximação, um olhar feminino e geracional que convida a perder o medo dos ferrões da diversidade..Ouve-se dizer a certa altura no filme que "o que não tem nome não existe". Falando para já só da pequena protagonista, podemos assumir a sua escolha de um nome [Lucía] como uma busca pela visibilidade diante dos outros? Precisamente. Desde logo sinto que, de há uns poucos anos a esta parte, o tema das infâncias trans tem começado a aparecer nos meios de comunicação, isto é, na agenda mediática essencial - porém, há 5 ou 10 anos não se falava desta questão. E acho que aí também está refletida esta ideia de que o que não tem nome não existe. Sem nomear (que era o que fazíamos), éramos incapazes de compreender, de conceber sequer, que pode haver meninos, meninas, jovens que não se identificam com o sexo ou o género com que nasceram. Então se não somos capazes nomear esta realidade, muito menos conseguimos acompanhá-la. E no caso do filme, essa ideia está contida no direito de darmos um nome a nós próprios... Tenho a sensação de que infantilizamos muito as crianças enquanto sociedade adulto-centrista. Não consideramos que tenham legitimidade para expressar quem são e serem respeitadas. Nesse sentido, quis seguir esta personagem para nos aproximar da sua forma de sentir, de ver o mundo, e compreender o seu sofrimento, que muitas vezes resulta em situações violentas..Este é um retrato que vai mais além da personagem interpretada por Sofía Otero. Mas não deixou de me recordar Tomboy [2011], de Céline Sciamma, os filmes de Carla Simón [Verão 1993 e Alcarràs] e algo de Alice Rohrwacher... Realizadoras que filmam crianças. Como foi trabalhar com esta menina de oito anos, na altura, num registo emocional tão delicado? Eu já tinha trabalhado com crianças nas minhas curtas-metragens anteriores, e talvez também venha daí o interesse em fazer este filme, porque é algo muito natural e orgânico para mim. Portanto, esses trabalhos anteriores deram-me ferramentas para pensar como fazê-lo. Mas, para começar, este é um feito de Sofía Otero. É uma miúda que realmente tem um mundo interior muito rico, caso contrário não seria capaz de entender as nuances que lhe ia propondo - se não as tivesse dentro, não as poderia dar. Eu própria fui-me surpreendendo à medida que avançava neste trabalho com ela, porque no princípio tínhamos uma paleta básica, como quem tem uma paleta de cores primárias, mas conforme fui vendo como ela interiorizava e compreendia as tais nuances e situações, e mesmo ao recordar questões dos ensaios com as outras personagens e trazê-las ao presente, tudo isso ajustava a emoção do momento, permitindo-me ir mais longe com ela. Não me limitei a pedir-lhe coisas básicas, tentei falar-lhe como a uma adulta. E isso só foi possível por ela ser como é, uma menina feliz e divertida, que quando acabava a rodagem se punha a dançar e a correr de um lado para o outro... Foi um milagre vê-la crescer como atriz ao longo das semanas de rodagem. É o seu primeiro filme!.As situações de família, pela sua espontaneidade, fazem com que o filme não precise de bengalas de interpretação: tudo se explica na interação e nos olhares das personagens femininas. Era importante que esta dimensão da vida dos adultos também fizesse parte da fotografia? Havia mil formas de contar esta história. Podia ter-me centrado somente na personagem de Lucía, como o Tomboy, mas uma das coisas que mais me emocionou, que me fez vibrar nas entrevistas que fiz às famílias de menores trans da associação do País Basco, foi os relatos de que o facto de terem acompanhado os seus filhos e filhas trans se tornou uma dádiva para toda a família: os laços fortaleceram-se. No fundo, esta ideia de que quem tinha feito a transição não eram tanto estes meninos e meninas mas as pessoas à sua volta, que tiveram de mudar o seu olhar. Isto ajudou-me a perceber que.......não se tratava de um processo apenas individual. Exatamente. É um processo que interpela o conjunto da sociedade, porque afinal o problema não está nestas crianças - o problema são os outros, que as fazem sentir como seres de segunda categoria. Daí a importância de abordar o contexto familiar. Para mim, a protagonista do filme é a relação entre mãe e filha: as duas são uma única protagonista. Mas também tinha de encontrar espaço suficiente para o resto das personagens, sem que este duo perdesse força..Houve muitos ensaios para chegar ao "naturalismo" deste quadro familiar? Não tantos como eu queria... Mas a verdade é que estivemos dois meses e meio a ensaiar. E foram ensaios diferentes, com as atrizes adultas (estes mais convencionais) e com as crianças, sempre a tentar encontrar o coração ou o conflito de cada sequência e transferi-lo para outro cenário ou situação distinta. Uma forma de, no momento da rodagem, manter a sensação de novidade e frescura da cena..O projeto em si teve uma origem específica ou decorre simplesmente das diversas abordagens da identidade presentes nas suas curtas-metragens? É verdade que tenho vindo a trabalhar, a partir de diferentes ângulos, as questões da identidade, do corpo e do género. E dei-me conta depois - por ser algo intuitivo, não consciente - que na vivência destas personagens femininas estão sempre presentes a vergonha e o pudor. Mas há de facto um dado mais específico: em 2018, um rapaz trans suicidou-se no País Basco. Este foi o detonador de tudo, porque me comoveu muito a carta que ele escreveu, e a carta que o próprio pai escreveu e publicou na imprensa... Foram semanas de uma forte comoção social no País Basco, porque até àquele ponto não se falara do assunto. E o suicídio deste jovem teve esse mesmo objetivo - ele deixou escrito que tomou aquela decisão drástica para tornar mais visível a realidade das pessoas na sua situação, e para que os que se seguissem passassem por menos dificuldades. Acabou por ser um despertar da sociedade..A própria identidade basca tem aqui uma camada de leitura. Claro! Eu queria convocar também a identidade basca porque é uma identidade menorizada dentro do binarismo cultural em que o espanhol ou o castelhano são a norma e o resto é "o outro" - neste caso, a euskera [língua basca] é o outro. Mas interessou-me fundamentalmente o facto de a euskera ser uma língua na qual os adjetivos não têm uma marca de género. Nem sequer existe uma terceira pessoa (ele/ela): não tem género. Então, durante algum tempo, esta língua ambígua serve de veículo à personagem de Lucía para se apresentar como quer num novo ambiente..E porquê as abelhas? Por muitas razões... Porque são o garante da diversidade na Natureza, e no fundo este filme é um canto à diversidade das formas de ser, de estar, de amar e de habitar o mundo. Mas, para além disso, porque o retrato desta família lembrava-me uma colmeia, onde cada membro, cada abelha tem uma função específica e todas são necessárias para a sobrevivência do grupo: mantêm a coesão na interdependência. Por outro lado, as abelhas também nos provocam medo, tentamos sempre afugentá-las... Que é o que acontece com as coisas que desconhecemos, lá está. Procurei aqui aproximar um tema que me parece ter-se convertido num debate demasiado conceptual, abstrato, ideológico, quando no fim de contas são pessoas que estão envolvidas. Procurei a empatia humana..dnot@dn.pt