Maria Teresa Horta: "Se chegar aos 100 anos, hão de continuar a dizer-me que queimei sutiãs. Não queimámos nada"
Começo de Conversa
Maria Teresa Horta
Na primeira entrevista a que damos o nome de Começo de Conversa, Maria Teresa Horta toma a palavra. Esta mulher tem passado a vida a trazer novidades à literatura portuguesa e agora tem mais três. Uma é a reedição do romance Ema, que tinha sido publicado em 1984 e estava fora do mercado, esgotado. Outra é a publicação em França, com lançamento no Museu de Cluny, em Paris, de A Dama e o Unicórnio, um livro de poesia sobre as gravuras das tapeçarias daquele conjunto. E finalmente o Prémio Stephen Spender, do jornal britânico The Guardian, para a tradução, que ganhou em 2016. Muitas novidades. Começamos por falar de Ema.
É importante para um autor que tem um livro esgotado há anos que esse livro, de que ainda por cima gosta especialmente, seja reeditado. A minha editora, a D. Quixote, tem o plano de reeditar a minha obra, que está praticamente toda esgotada. Incluindo a poesia, que na maioria está, até 2006, numa antologia, mas a partir daí não. A Dama e o Unicórnio e as Feiticeiras, que já saíram depois disso, não estão incluídos. Para um autor, é muito importante ver cá fora um livro que não existia nas livrarias, não existia para os leitores. Existe para o escritor, temos o livro em casa, temos os amigos, mas os leitores não sabem onde encontrar o livro.
Trata-se de um livro que tem um tema de uma atualidade infeliz, a violência sobre as mulheres. No caso, a violência dentro do casal.
São várias violências porque é ao longo das gerações. A Ema é uma mulher, várias mulheres nela. Não tem uma data determinada, mas vamos ao século XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, e ao longo desses séculos essa Ema vai sendo vítima de várias violências, sendo que a esmagadora violência - escrevi o livro nos anos 1980 - é silenciosa, passa-se dentro da casa, onde essas mulheres têm o seu mundo. Elas não estavam no mercado de trabalho, não lhes era permitido sair - estamos a falar de determinadas classes sociais, porque a mulher operária que a partir de certa altura aparece, e as mulheres do campo que sempre estiveram no exterior e sempre trabalharam, até pariam os filhos no intervalo de uma enxadada e outra.
Todo o cenário é de violência.
E uma violência surda.
É uma mulher que não tem prazer sexual com o marido, só consegue prazer sozinha.
Sim, e não sabemos nunca qual delas está a falar. Só há uma, a que aparece em último lugar, que muito claramente vai aparecendo ao longo do livro como sendo atual, nos anos 1980. Ela é inexistente diante daquela figura de um homem intelectual, culto, que tem um escritório. Isso para mim foi importante dizer, porque existe a ideia falsa de que as mulheres são espancadas ou violadas por uma determinada classe social, por um determinado tipo de homens que não são cultos, que são de um estrato social mais baixo, porque os outros são maravilhosos. Mas não é verdade. Tanto bate ou viola a mulher um médico, um advogado, um político, seja quem for, como um operário, camponês, e por aí fora. A mulher sempre apanhou e sempre foi violentada. As pessoas não encaram a violência do que se passa na cama, no ato sexual com o marido. Ainda hoje isso é muito difícil de perceber.
Não vou revelar nenhum segredo, mas logo na primeira página esta mulher mata o marido.
Mata e ama-o. Quis que ficasse claro que é só ela, não as que estão para trás. Por tradição, por sociedade, não eram defendidas, eram educadas para servirem o marido, mas também acontece com as mulheres do século XX e no século XXI. É importante ver que o livro é atual agora.
Embora as mulheres participem hoje na vida pública e tenham trabalho.
Mas há toda aquela violência recôndita, aquela coisa interior, aquela violência que parte da obsessão da paixão e do amor sobre um homem que não liga nenhuma. Ela quer sair mas no fundo não quer sair de casa. Isso passa-se ainda hoje, mesmo com mulheres que aparentemente estão libertas e que até estão na política, e trabalham e têm um ordenado. Até ao 25 de Abril, uma mulher poderia ter isto tudo e o marido podia ir receber o ordenado dela e tinham que lhe pagar.
Essa realidade mudou mas a violência mantem-se?
Mudou. Ele podia até acabar com o contrato de trabalho da mulher. Até ao 25 de Abril isto era assim e as pessoas nem sabiam que podia acontecer.
As mulheres e os direitos das mulheres foram sempre uma paixão, mas A Dama e o Unicórnio foi uma revelação.
Eu tinha 17 anos, estava a viver em Paris, e pensei em não ir nesse dia ao Louvre, onde ia todos os dias para tentar ver o Louvre todo, o que é completamente impossível, nem que se fique lá sempre. Fui ao Museu de Cluny e à entrada tinha uma sala enorme com tapeçarias à volta. À quinta ou sexta tapeçaria de batalhas, naturezas mortas, paisagens, de repente aparecem duas mulheres, uma a tocar harpa e uma dama que está a tentar a escutar e a dar-lhe qualquer coisa. Era um universo oposto ao outro, achei aquilo muito feminino, que coisa tão estranha. As tapeçarias estavam pretinhas, coitadinhas.
Foram entretanto restauradas?
Foram, mas na altura não. Mas eu fiquei logo... custou-me sair dali, logo da primeira vez. É sempre a mesma coisa, não consigo sair dali, fico colada. Pensei que depois voltava atrás e comecei a andar. Vi mais três e outra vez as mesmas duas mulheres. Aí comecei a andar cada vez mais depressa para ver se havia mais. E havia, pasmosamente divididas, sendo claramente um núcleo que pertence à mesma história. Deviam estar juntas.
Neste momento estão juntas?
Sim, neste momento estão juntas num sítio muito bonito.
Isso aconteceu quando eras jovem mas só escreveste agora.
Eu nem sabia o que ia fazer. Fazia poesia desde os 13 anos, mas não fazia ideia nenhuma. Queria publicar mas nem sabia se deveria. Só fiz uma jura a mim mesma: eu vou fazer qualquer coisa com isto, qualquer dia, seja o que for. Quero escrever sobre isto. Não me interessa nem sei mas vou fazer.
E foste paciente, porque publicaste em 2013. E agora vai sair uma versão em francês que vai precisamente lançada no Museu de Cluny. Sei que ainda há algumas confusões à volta da edição.
Sim, ainda não está resolvido. Quando recebi a notícia - e só depois recebi uma notícia menos boa sobre essa confusão - senti que era um sonho que se tinha realizado. Eu sempre disse que o livro tinha de ser publicado em França, porque o tema não é português, é francês e aquela paixão nasceu em Cluny. Tenho dito a pessoas para irem ver, pessoas que até vivem em Paris e nunca foram ver A Dama e o Unicórnio, é incrível. Aquilo é um deslumbramento, e então agora que elas estão restauradas aquilo é um deslumbramento estranhíssimo, é qualquer coisa de sonho, qualquer coisa de onírico, muito estranho. O livro publicado em Portugal é lindíssimo graficamente, o que tem a ver com a Patrícia Reis. Costumo dizer que só de olhar para a Patrícia a gente vê que ela tem gosto, é espantosa. Ela e a Joana fizeram aquele livro completamente maravilhoso. Foi inteiro já pronto para a D. Quixote para ser publicado. Eu perguntei à Patrícia se ela queria entrar nesta parceria. Porque é uma parceria, há também a música.
A música do compositor António Sousa Dias?
Sim, que eu conheço de muito pequenino porque o pai dele fez um filme sobre um poema meu.
O pai dele, António Macedo?
O realizador António Macedo fez um filme sobre um poema de um livro meu, Verão Coincidente, o meu terceiro livro. Ele era um menino, de 12 ou 13 anos, e ouvia falar muito de mim, tinha os livros, foi lendo. E um dia estava eu no final do meu romance...
...As Luzes de Leonor?
... sim, e recebo um telefonema dele, que tem exatamente a voz do pai. Pensei que tinha entrado na máquina do tempo. Ele disse-me que tinha uma encomenda para fazer uma música sobre um tema e gostava de que fosse comigo. Foi a minha casa. Disse-lhe que aceitava se eu escolhesse o tema. Já me tinha acontecido o mesmo no meio do livro - quando o António Chagas Rosa veio ter comigo e fizemos As Feiticeiras, outra promessa que tinha feito a mim mesma - uma homenagem às primeiras feministas que foram as feiticeiras. Como diz o Michelet, que não é uma mulher e portanto é isento, aqueles senhores vestidos de negro entravam numa aldeia e quando saíam não havia uma mulher. Isto sabe-se e continua tudo calado, fala-se de grandes catástrofes e não se fala nunca desta chacina ... há várias chacinas e as pessoas reconhecem mas nunca aquela que diz respeito às mulheres.
Portanto o livro vai sair em França, é um objeto lindo.
Não sei como está o livro, porque os editores ficaram de dizer qualquer coisa. De repente tenho a notícia de que o livro está feito e vai haver o lançamento do livro no Cluny. Isso é o máximo, nunca pensei. Cumpri um dos grandes sonhos, se não o grande sonho da minha vida.
Isso é extraordinário.
Eu tinha 17 anos, fazia poesia, nem sabia se ia publicar, como era. Hoje publica-se muito facilmente, até porque as pessoas não têm a dimensão da poesia... para mim continua a ter a dimensão do sonho, a dimensão do tudo.
Continuas a escrever todos os dias? Estás a fazer a cama e de repente...
Escrevo todos os dias, cada vez mais, nunca escrevi tanto. Tenho de andar sempre com um papelinho. E quando vou para a cama levo sempre tantos livros que o Luís diz "lá vem ela com a biblioteca". Os meus livros de poesia estão cheios de poemas meus, porque depois de fazer meto nas minhas autoras queridas e nos meus autores queridos para eles tomarem conta.
E há o prémio do The Guardian.
Foi uma surpresa completa.
Não sabias, não te candidataste?
Não sabia nada. Eu recebi uns telefonemas de Londres de uma amiga a dizer que uma poetisa vinha passar férias a Lisboa com o marido e gostava muito de me ver, adora a minha poesia. Ela é professora, faz traduções. Entretanto fala-me a professora Ana Raquel Fernandes e diz que está cá uma senhora chamada Lesley Saunders, uma poetisa "que gosta imenso da sua poesia". Vamos encontrar-nos. Encontrámo-nos as três e foi coup de foudre, completamente, às duas por três era uma confusão de línguas naquela mesa entre o inglês, o francês e o português, que ela está a estudar por causa da minha poesia.
O prémio apareceu por intermédio dela?
Ela é que é a tradutora, ela ganhou o prémio da melhor tradução. É um premio com muito prestígio em Inglaterra. Quando falou comigo ia sair a reedição da Minha Senhora de Mim. Ela é professora de Latim e adora o som da língua portuguesa. E pediu-me, à mesa, que lesse três poemas do livro. Comecei a ler e ela disse: "é tão bonita a sua poesia, tem tanta musicalidade, tanta harmonia, gosto tanto da poesia portuguesa". O livro era lançado passado dois dias, ela apareceu. E alguém me perguntou se eu queria dizer um poema... porque eu tenho uma mania: só eu é que leio a minha poesia, só eu é que sei onde paro, as pessoas fazem uma grande confusão. Nunca fico a ouvir, nunca, sofro imenso e sou muito malcriada. Já me aconteceu coisas terríveis em direto na televisão de alguém ler e eu dizer - está a ler tão mal, desculpe, dê cá. Coisas horríveis de que depois me arrependo e peço desculpa.
Repentes... Tratava-se do prémio Stephen Spender de 2016.
Eu não soube que ela ia concorrer, ela nem me disse que ia traduzir a minha poesia. Estava no lançamento e eu disse que ia ler mas dedicava à minha amiga Lesley Saunders que gosta muito de ouvir ler poesia portuguesa.
Passaram muitos anos, tu tens uma vida muito rica, tens uma vida de jornalista também, precisamente no Diário de Notícias
E n" o diário e na revista Mulheres e n" A Capital que foi onde comecei.
Fazes 80 anos neste ano. Como é que estás a viver isso?
É verdade. Ah, não vejo nada, não acredito.
Não acreditas?
Não, acho que a minha mãe se enganou. A sério, não acredito, não me sinto nada assim, sinto-me igualzinha e muito mais malcriada e rebarbativa. De vez em quando digo umas coisas e os meus netos dizem - as avós não dizem isso.
Sempre foste uma insubordinada.
E continuo, acho que estou um bocado pior. Acho que já posso estar pior.
A tua vida hoje continua a centrar-se na poesia?
A minha vida interior centra-se na poesia e sempre se centrou. Mas depois sou tudo menos isso que dá ideia quando tu dizes que a minha vida se centra na poesia.
Não estás na serra de Sintra a escrever poemas com alguém a tocar harpa atrás...
Eu levanto-me todos os dias às seis e meia da manhã, desde pequenina, acho que tenho de me levantar, quero levantar-me antes de toda a gente, nunca percebi porquê. Fiz 14 anos de psicanálise e fiquei na mesma sem saber por que faço isto. O Luís diz-me...
O Luís é o jornalista Luís de Barros, o teu marido.
A minha paixão, vivemos juntos há 52 anos. Ele diz-me - amanhã tenho de estar às oito não sei onde, tem que se pôr o despertador para as seis e meia. E eu levanto-me às cinco. E ele sente-se triste porque eu me levanto muito mais cedo.
E continuas a tratar de tudo em casa? As pessoas têm a ideia de que uma feminista não sabe cozinhar, passar a ferro.
Eu costumo dizer às minhas amigas - se te levantares às sete da manhã, pensa em mim e eu estou a passar a ferro. Estou a passar as camisas do Luís. Porque essas coisas não vão para a máquina.
Continuas a lavar à mão?
As camisas, todas as noites.
Aí está uma coisa que contraria o estereótipo da feminista, como as pessoas o entendem.
Mas as pessoas não entendem, não sabem o que é o feminismo.
E também não andaste a queimar sutiãs?
Não. Ah, alguém que me deixa dizer isso, finalmente! Todos os dias há pessoas que aparecem no facebook a dizer - então e a queima dos sutiãs? Não, ninguém queimou sutiãs, ninguém queria queimar sutiãs, ninguém usava sutiãs naquela altura. O sutiã era uma coisa caríssima e como ninguém usava eles subiam muito o preço. Ninguém usava, na nossa idade ninguém tinha sutiãs. Mas que ideia é essa? Nós tínhamos combinado ir fazer uma coisa divertida. Havia manifestações todos os dias em todo o lado que se cruzavam mas paravam para deixar passar a outra.
Isso depois do 25 de Abril, no chamado PREC?
Isto foi em 1975, logo em janeiro. Por que é que não vamos fazer no Parque Eduardo VII uma fogueirinha - o Parque Eduardo VII não estava como está agora - vamos queimar os estereótipos - o véu da noiva...
Queimaram um véu de noiva?
Não chegámos a queimar nada porque ninguém nos deixou nem acender um fosforozinho, desculpa lá. Porque a Helena Vaz da Silva fez o grande favor de pôr na primeira página do Expresso, à direita -" feministas vão fazer striptease no Parque Eduardo VII".
Uma coisa escrita antes de o facto acontecer?
Nem era para acontecer, porque se há coisa que as feministas detestam é o striptease. Sempre foram contra o striptease. Só a Helena é tinha vontade de fazer uma história - eu depois zanguei-me com ela e pediu-me desculpa, pediu desculpa às mulheres todas através de mim. Achei que ela devia ir para o Parque Eduardo VII gritar e pedir desculpa. Fomos para casa da Madalena Barbosa, que era do MLM [Movimento de Libertação das Mulheres, promotor da iniciativa], que morava num prédio de esquina no topo do Parque Eduardo VII. E levávamos as crianças, porque era uma coisa divertida. Uma ia vestida de dona de casa e ia queimar a vassoura, outra de vamp, como se dizia na altura, ou objeto sexual, e ia queimar o turbante e o salto alto. Sutiã? É que nem nunca entrou nas nossas conversas porque era coisa que não tínhamos.
E acabaram por não queimar nada?
Não porque eu cheguei a janela e só via subir homens. Que horror, há alguma manifestação de homens aqui ao pé? Não me digam isso. Eram assim aos 50, 30.
Estava tudo à espera do striptease.
E à porta estavam umas meninas parvas com cartazes contra o aborto. O que é que as meninas estão aqui a fazer? Ah, somos contra o aborto. Mas isto não tem nada a ver com o aborto. Ah, mas somos contra o aborto. Está bem, então, isto é um país livre, disse eu animadíssima. Façam favor de dizer que são contra o aborto. Fui para cima e disse estão ali umas parvas em baixo que são contra o aborto. Coitadinhas, tão parvas, foram logo as primeiras que apanharam, porque eram as únicas mulheres que estavam ainda lá.
Foram confundidas?
Foram confundidas, apanharam logo, bateram logo nelas. Que coisa horrível. Nós íamos com as crianças, um bocado já aflitas, todas naquela mascaração - eu não ia mascarada, como é óbvio, ia ao lado, nem me passava pela cabeça, mas iam as mais novas. Estavam divertidíssimas. Levávamos uns fosforozinhos e umas aparas de madeira. As aparas foram logo pelo ar, os fosforozinhos desapareceram. Tirando a noiva, a quem ninguém tocou nunca, até abriam alas para ela passar.
Isso é muito significativo.
Ela ficou de noiva, de véu, e assim ficou até ao fim com a flor de laranjeira que ia ser queimada mas ficou incólume porque eles abriam alas para ela passar.
Foste agredida?
Nós metemos as crianças, pensávamos nós que estavam muito defendidas, numa carrinha que era da Madalena Barbosa e estava à porta. Metemos as crianças e começaram a tentar virar a carrinha.
Com as crianças lá dentro?
Com as crianças lá dentro. Abrimos a porta de trás e fugimos com elas para a casa dela. Ela só teve tempo de entrar, fechámos a porta. O meu filho durante um tempo dizia que lhe era difícil passar no Parque Eduardo VII. Porque aquilo foi uma coisa tenebrosa. Houve duas coisas muito bonitas. O Adelino Gomes, que estava lá a fazer a reportagem, disse - "é a primeira vez que sinto vergonha de ser homem". E o Augusto Abelaira, que era diretor d" O Século, escreveu no dia seguinte um texto sobre isso. Foram as únicas coisas. Eles tentaram violar, bateram, arrancavam as roupas, faziam esse tipo de coisas.
Isso tudo numa tarde no Parque Eduardo VII?
Repleto de homens, nunca houve tanto homem em Lisboa junto. Que eu saiba, nem no futebol porque agora já felizmente estão mulheres. Eu gosto muito de futebol. Nós tivemos de ligar para a polícia. Foi a única manifestação em que as próprias manifestantes disseram à polícia "Salvem-nos!". Todos traziam na lapela o que se usava na altura, os pins dos partidos. Toda a gente sabia quem era do PSD, do CDS, do PS, do PCP. E estavam lá de todos.
Uma manifestação muito unitária contra as mulheres. E ficou a lenda.
No dia seguinte fomos a vários partidos, eu fui ao PCP, dizer: o que é isto? Não sabiam de nada, juraram, acharam tudo muito mal, achavam mal as feministas mas também achavam muito mal que se batesse. Naquela altura em que bater em qualquer pessoa era mal, era um gato, era um periquito e também as mulheres. Foi o que nos foi respondido. Lembrando-nos que havia aquela lenda das feministas americanas que tinham queimado sutiãs, mandámos-lhes a notícia. Tínhamos bastantes contactos por causa das Novas Cartas Portuguesas, quando elas nos apoiaram muito em todo o mundo. E as americanas responderam-nos logo por telefone, dizendo: "Que coisa mais estranha. Nós nunca queimámos um sutiã."
Também não? Portanto, a queima dos sutiãs não é um mito urbano só cá em Portugal, é em todo o mundo?
É. A Maria João Seixas já me disse - agora já aí sutiãs que se farta, devíamos fazer-lhes a vontade. Devíamos ir buscar uns sutiãs e íamos ao Parque Eduardo VII, filmávamos a comunicação e dizíamos: pronto, já queimámos sutiãs. Porque é incrível. Um dia recebi um telefonema da RTP a convidar-me para um programa de roupa interior feminina. Eu, roupa feminina? De repente fez-se-me luz: sutiãs. Ai vou, para dizer que não se queimaram. Acabei de dizer isto tudo que te estou a dizer e há uma senhora gorda que está ao meu lado, que também fazia parte das pessoas convidadas, que disse: "quando queimou os sutiãs no Parque Eduardo VII..." Desculpe, está a chamar-me mentirosa? Não ouviu nada do que eu disse?
Acontece muito as pessoas não ouvirem o que se diz, estarem a pensar noutra coisa.
Portanto eu acho que nem é com 80, se eu chegasse aos 100, estaria velhinha, velhinha e haviam de me dizer "quando tu queimaste sutiãs no Parque Eduardo VII". Já não posso mais dizer: não queimámos sutiãs no Parque Eduardo VII!
Fizeste aqui uma grande revelação. Gostas de futebol?
Gosto imenso de futebol. Mas ainda gosto mais do Benfica. Sou assim desde que nasci, acho que já nasci do Benfica. Eu sou sócia do Benfica, os meus netos são sócios do Benfica, o meu filho é sócio do Benfica. É tudo. Na minha família, de um lado ou de outro, por acaso era tudo do Benfica. Apaixonadamente. Sou uma apaixonada muito grande.
Quando vês um jogo na televisão gritas?
Para já, farto-me de engomar. Poesia, fico tão inquieta que não sou capaz. Ler, nem uma linha. Mas vou-me embora porque me sinto mal do coração. Então quando a coisa começa mal... Se nós estamos como agora estamos, com o Rui Vitória e com estes jogadores maravilhosos, eu não tenho aflição. Mas quando tenho aflição digo "já não aguento mais, estou a sentir-me mal" e vou lá para dentro. Só que depois não consigo nem ler, nem escrever, nem nada porque passo a vida a ir lá: e então, e então? Já está tudo farto também. Aí, vou engomar, porque é aquela coisa em que não penso. Não lavo loiça que detesto, e não faço camas porque ainda detesto mais, mas engomar é como o outro, porque é quente e eu sou friorenta. Normalmente, como os jogos são de inverno, dá-me muito jeito, fico com a roupa engomada, estou longe, distraio-me. Não é preciso também muita atenção porque já estou muito habituada, engomo roupa desde pequenina. Tenho uma carta escrita à minha mãe, que se tinha ido embora de casa, e eu às escondidas escrevi-lhe uma carta: "São seis e meia da manhã...
... a tua hora...
... e ontem já me ensinaram a engomar, a lavar e a borrifar. Eu gosto do borrifar.
Isto é mesmo um começo de conversa, porque agora ficávamos aqui a conversar.
Mas é melhor fazer poesia. Eu gosto de fazer poesia. Eu sou a minha poesia.