Saudades cinéfilas
O que é que fica connosco depois de se ver Grand Tour? Assim de repente, a dimensão. Uma arrastada poesia exótica. Um aborrecimento belo (ou uma beleza aborrecida?). Talvez um ensaio sobre a “inocência como uma espécie de insanidade”, para usar aquela famosa expressão de Graham Greene. E são as palavras desse escritor britânico que também nos vêm ao espírito ao identificar no filme de Miguel Gomes um imenso, infinito desejo cinéfilo. Uma emoção que tem mais que ver com a história das formas de fazer cinema, ou a referência íntima dessas formas, do que com o périplo das personagens principais. “Eu tinha chorado os filmes mudos quando o sonoro se instalou e chorara o preto e branco quando o Technicolor inundou a tela. Da mesma maneira, hoje, assistindo ao último filme sério, socialmente consciente, do senhor Godard, tenho saudades às vezes desses anos 30 já mortos, de Cecil B. DeMille e dos seus cruzados, dos dias em que quase tudo podia acontecer”, escreve Greene num texto intitulado "Recordações de Um Crítico de Cinema" (Santos e Pecadores, Livros do Brasil).
Pois é esse sentimento de um tempo em que “tudo podia acontecer” no ecrã que vem com o preto e branco da fotografia assinada por Rui Poças, com a vaga memória do cinema mudo espelhado no rosto expressivo de Crista Alfaiate, ou com a transparência das filmagens de estúdio, que chocam - no sentido de um sonho de cinema - com as imagens documentais contemporâneas usadas sobretudo no início do filme, como testemunho da própria excursão asiática da equipa de argumentistas de Grand Tour.
É, porém, o ambiente de 1918 que enquadra a narrativa dos noivos britânicos, Edward e Molly (respetivamente, Gonçalo Waddington e Crista Alfaiate), ele um funcionário destacado na Birmânia prestes a entregar-se a um impulso melancólico de fuga ao casamento, enquanto ela, qual criatura aventureira, o segue pelo mapa da Ásia, na medida de um encontro com o mundo - Tailândia, Vietname, Filipinas, Japão, China.... Serão eles as borboletas que se libertam do anterior “filme-casulo” Diários de Otsoga (2021)?
A grandeza e insanidade da viagem deixa-nos então com sabor a mundo. Algo que é indissociável da façanha cinematográfica, essa vontade de ancorar a experiência na cinefilia mais romântica e lúdica. Romantismo e charme travesso, pois então... Greene falava nas saudades dos anos 1930 (pense-se, neste caso, na vertigem dos anos 20 que o sorriso de Crista sugere), e é de facto pelo artifício da nostalgia, doseado com excentricidade q.b., que Miguel Gomes nos leva por terras de ficção documentada. Ou documento mor de ficção.