Afinal havia outra. Mas neste caso a "outra" é a Julieta do Romeu... Rosaline, comédia de época com floreios pop que se apropria do texto de Shakespeare para dar uma voltagem contemporânea ao respetivo romance trágico, tem como personagem principal essa figura vagamente retratada pelo Bardo e que foi a primeira paixoneta de Romeu, antes de este se perder de amores por Julieta e as coisas não correrem lá muito bem. Sobrinha do Lorde Capuleto e prima da original protagonista da peça de Shakespeare, Rosaline ganha agora outra visibilidade (com base no livro When You Were Mine, de Rebecca Serle), fazendo dos clássicos titulares um par de secundários que, no fim de contas, beneficiam da inteligência prática dela em matéria de morte encenada e resolução de guerras familiares. Kaitlyn Dever, a atriz que se destacou em Booksmart, de Olivia Wilde, e na série Dopesick (com nomeação para um Emmy), dá vida a este corpo rebelde e fora de época que concentra a energia necessária para mandar às urtigas as convenções sociais..Quando a vemos pela primeira vez no filme de Karen Maine, Rosaline ainda é visitada por Romeu numa varanda ao luar, onde este se desfaz em balofas elaborações românticas de conquistador de meia-tigela. "O Romeu era capaz de se apaixonar por um pauzinho, se quisesse. É completamente obcecado com o conceito e a ideia do amor. Isso representa praticamente o todo da sua personalidade", palavras adequadas do ator que o interpreta, Kyle Allen, na conferência virtual em que o DN participou..Nesse contexto, também a realizadora esclareceu ao que veio: "A ideia de situar o filme no período clássico da Renascença com uma linguagem moderna e as sensibilidades e temas modernos, criou, na minha cabeça, a justaposição perfeita de velho e novo que acerta em cheio na comédia e faz com que esta brilhe." Com efeito, Rosaline tem um pé no registo de época e o outro numa abordagem mais arejada, que se reflete inclusive na banda sonora com temas como Dancing on My Own, de Robyn, ou a versão All by Myself de Céline Dion, misturados com a sonoridade de instrumentos antigos - alaúde, flauta, cravo - para criar uma divertida sensação anacrónica, com forte cunho feminino. "Algo que, de certa forma, representa a mente de Rosaline, o que ela está a pensar, ajudando a solidificar a sua narrativa e a sua psique", sublinha Maine. A música funciona, aliás, como um ritual de preparação para Kaitlyn Dever: "Gosto de criar uma playlist para cada papel. Comecei a fazê-lo há alguns anos e é bastante útil para definir o tom e o estado de espírito da personagem. Neste filme, acho que a banda sonora tem definitivamente essa função.".Sendo uma personagem tão pouco desenvolvida na peça de Shakespeare, e por isso praticamente desconhecida, esta ex-namorada de Romeu é um terreno que se pode explorar com liberdade, assumindo um ponto de vista completamente novo (e, acrescentamos nós, com laivos de Jane Austen). Foi o que fez Dever: "Rosaline existe na história original mas não sabemos muito sobre ela, o que me permitiu criar a minha a própria Rosaline. Acho que ela acabou por ser apenas uma versão acentuada de mim mesma, às vezes um pouco extravagante e genuinamente apaixonada e determinada. A parte mais emocionante foi interpretar o seu sarcasmo. Adoro o facto de ser uma jovem à frente do seu tempo." Uma jovem que alimenta o desejo de ser cartógrafa e que não esconde a sua perplexidade perante a frase mágica de Romeu, um homem do seu tempo, quando falam do projeto de futuro: "Tu cuidavas da casa e das crianças"....Felizmente, Rosaline terá direito a uma cara-metade que em nada se compara ao bafio do galanteador Romeu. Surge em cena Dario, um jovem cavalheiro a quem o ator britânico Sean Teale confere a marca progressista necessária. "Eu cresci a ver comédias medievais, como A Princesa Prometida [1987], enfim, qualquer coisa que Cary Elwes fizesse", conta Teale. "Vi Robin Hood: Heróis em Collants [1993] mais vezes do que deveria... Por isso, quando estava a imaginar Dario, só pensava que ele é um tipo cool e eu sou mais do estilo pateta do Cary." Se não o dissesse, ninguém notaria: Dario é decididamente o elemento sofisticado e fleumático da história, um equivalente mental de Rosaline, com personalidade mais maleável e menos impulsiva..Embora secundária, Julieta é também aqui uma rapariga de carne e osso, interpretada por Isabela Merced (de Dora e a Cidade Perdida). Quando foi convidada para o papel, a atriz aceitou-o precisamente por não se rever, de todo, nesse símbolo romântico feminino. Quis atirar-se ao desafio. Além disso, aliciada pela inversão da perspetiva clássica: "Agrada-me muito que Julieta e Romeu não sejam o ponto principal." Nem isso, nem o estereótipo da personagem frágil desprovida de pulso: "Julieta é uma mulher forte, mas também é muito sensível, emocional, simpática e empática. E acho que ela e Rosaline fazem um excelente trabalho ao representar ambos os lados do que o feminismo e a feminilidade significam na realidade. Ou seja, Rosaline pode ser forte, eu posso ser sentimental e sensível, mas ainda assim somos ambas mulheres independentes. Gosto de ver lado a lado os dois extremos da rebeldia e da doçura, que aqui é uma espécie de ingenuidade", defende Merced..No seu invólucro pop, Rosaline tem qualquer coisa de The Great, a série de Tony McNamara em que Elle Fanning e o seu vistoso guarda-roupa emprestam vibrações contemporâneas à corte de Catarina, a Grande; embora o filme de Maine não possua um terço dessa excentricidade e irreverência. Estamos a falar de uma produção juvenil totalmente comprometida com uma linguagem cómica de desassombro feminino. A partir de hoje disponível no Disney+..dnot@dn.pt