Na cena de abertura do documentário As Fado Bicha, vemos Lila Tiago a pintar as unhas, aparentando estar com sono. Ouvimos, então, a voz da realizadora, Justine Lemahieu: “Começar um filme por uma pessoa a bocejar, achas que vai dar?” Ao que Lila responde: “É para introduzir as pessoas ao aborrecimento que vai ser - ficam avisadas.”Na sua mistura de singeleza e ironia, a cena anuncia o tom do que se vai seguir. Que é como quem diz: estamos perante um exercício cinematográfico cujo suave intimismo nasce de uma genuína cumplicidade entre quem filma e quem é filmado. Mais do que isso: essa cumplicidade, naturalmente alheia a qualquer forma de “voyeurismo”, enraíza-se numa fundamental depuração das linguagens. Logo a seguir, aliás, Lemahieu diz que “vamos fazer um filme sobre os Fado Bicha”, levando Lila a corrigir: não “os”, mas “as Fado Bicha”, sendo “o Fado Bicha” a designação do duo musical formado por Lila e João Caçador.Este é, por isso, um exercício sobre identidades, mais exatamente sobre um espaço de raiz LGBT cuja orgulhosa afirmação identitária é tanto mais transparente - porque tanto mais poética - quanto, no plano artístico, se apresenta envolvida com aquela que talvez fosse a mais inesperada forma de expressão. A saber: o fado. Lembremos, por isso, duas referências emblemáticas na trajetória do Fado Bicha: primeiro, a admirável presença no Festival da Canção de 2022 (com o tema Povo Pequenino); depois, ainda no mesmo ano, a sua participação em Casa Portuguesa, grande acontecimento teatral escrito e encenado por Pedro Penim, expondo a contraditória nostalgia de um certo imaginário nacional.Agora, deparamos com um documentário que, passe a redundância, está mesmo empenhado em documentar. Isto porque seria muito fácil ceder à rotina mediática, sobretudo televisiva, que tende a reduzir a “diferença” sexual (seja ela qual for) a um esquemático panfleto de “resistência”. O que, entenda-se, não exclui a abordagem dos dramas que a sua vivência pode enfrentar - há mesmo um diálogo exemplar em que, a partir de algumas memórias de João Caçador, surge uma reflexão sobre a importância de conhecer tais dramas a partir de fatores sociais e culturais que atravessam todos os espaços, da intimidade da família aos cenários públicos do quotidiano.Sem esquecer que, embora evitando qualquer tipo de “tese”, As Fado Bicha é também um objeto que nos ajuda a recuar um pouco face ao discurso corrente segundo o qual a atual diversificação comercial do fado corresponde sempre a um verdadeiro enriquecimento da sua prática (confesso-me mesmo algo cético face a tal “enriquecimento”). Uma coisa é certa: quando Lila e João evocam Amália, isso soa justo e genuíno. .'Marcello Mio': O cinema, o ator, a sua filha e o filme dela.Regresso ao realismo em tom italiano