Retrato de uma senhora em chamas 

Vicky Krieps veste a pele de Isabel da Baviera, imperatriz da Áustria num filme de alta psicologia feminina. Corsage - Espírito Inquieto, de Marie Kreutzer, tem o visual todo no sítio, mas não sabe bem o que fazer com a melancolia.

A mulher que chega aos 40 anos. É por aqui que se cose o drama de Corsage - Espírito Inquieto, um estudo de personalidade livremente concebido a partir da imagem de Sissi, a imperatriz da Áustria. Como que a rasgar a memória dos filmes dos anos 1950 que deram a fama a Romy Schneider (uma popularidade bastante incómoda para a própria, diga-se de passagem), o novo retrato assinado pela austríaca Marie Kreutzer assume-se na qualidade de antítese dessa representação feminina do passado. Vicky Krieps faz o resto: toda ela é desassossego, atrevimento, insatisfação, impulso moderno e depressão. Mas será que isso é suficiente para "encher" a ideia de um filme?

Corsage parte, precisamente, da ebulição de mal-estar que chega com o monstro da idade. E aí, em particular no controlo obsessivo da silhueta, a dimensão histórica da personagem de Isabel da Baviera terá os seus elementos verídicos. Era de facto uma mulher que seguia uma disciplina autoimposta para manter a elegância, submetendo-se a um regime alimentar rigoroso e a exercícios de ginástica quotidianos conjugados com a esgrima e a equitação. Mas tirando os planos repetitivos que a mostram a ser "preparada" pelas aias para aparecer em público (o corpete apertado com força, por insistência da própria, enquanto se registam o peso e as medidas), ou em belas poses de esgrimista e cavalgadas pela Europa, Corsage é uma fantasia em torno do estado de espírito de uma mulher presa aos olhares da corte imperial e ao casamento gélido com o imperador Francisco José I.

Indicando no ecrã os anos de 1870 em que este suposto quadro psicológico tem lugar, o filme vai-se revestindo de anacronismos decorativos que procuram assinalar a modernidade interior daquela mulher, como seja o tema da banda sonora ou covers de Help Me Make It Through The Night, de Kris Kristofferson, e As Tears Go By, de Marianne Faithfull, inseridos como estranhas melodias de época. O problema é que Kreutzer não é Sofia Coppola, autora do retrato mais genuinamente pop da monarquia (Marie Antoinette), e Corsage acaba por cair nos clichés formais do filme-metáfora, com um visual irrepreensível que tenta garantir o veículo da ideia. Está tudo na imagem do corpete apertado da personagem, já se percebeu...

Vicky Krieps, a atriz que se revelou no maravilhoso Linha Fantasma e que vem crescendo a olhos vistos, tem aqui uma nova vitrina seguríssima, com grande margem para explorar os gestos rebeldes da emancipação feminina (sem espanto, surge nos créditos como produtora executiva). Mas por mais admirável e brava que seja a sua interpretação, não chega para sustentar um filme de um motivo só... Esse motivo é a melancolia, com expressão direta numa fase em que a imperatriz se foi afastando da vida pública e começou a usar um véu sobre o rosto, como se fizesse luto de si mesma. É uma melancolia tão estética que até uma tentativa de suicídio parece uma não ocorrência entre as não ocorrências que desenham o filme. É apenas uma mulher que fez 40 anos e precisa de desapertar o espartilho, cortar o cabelo e mostrar o dedo do meio à corte.

dnot@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG