Retrato de Eduardo Lourenço quando jovem
Maria João Gala / Global Imagens

Retrato de Eduardo Lourenço quando jovem

Tudo começou com uma investigação jornalística, em 2021. Luciana Leiderfarb mergulhou no imenso espólio de Eduardo Lourenço na Biblioteca Nacional e descobriu que tudo começou em plena adolescência. O resultado é o livro 'Eduardo antes de ser Lourenço', agora publicado pela Gradiva.
Publicado a
Atualizado a

Cedo escolheu o caminho que sabia ser mais difícil: o da heterodoxia. Falamos de Eduardo Lourenço, que a jornalista Luciana Leiderfarb captou num movimento semelhante ao do atleta de salto em comprimento, que dá um impulso para trás, a fim de ver melhor e de se lançar para a frente, num arranque decisivo. Tudo começou em plena pandemia quando Luciana passou meses no espólio do pensador, depositado ainda em vida deste na Biblioteca Nacional, e descobriu que os primeiros textos dignos de nota datam de 1940, tinha Eduardo - pasme-se - 17 adolescentes anos. Uma descoberta tão mais emocionante, quando abriu as primeiras páginas do Diário e encontrou este parágrafo que nos atinge com um golpe de beleza: “Foi quase anteontem que eu fui eterno. Eu sei que ninguém pode acreditar nisso. Nem eu. Mas o certo é que nesse tempo ninguém tinha morrido ainda. A morte era uma cerimónia ou uma festa. Era fora de mim que se morria.”

Desta emoção nasceu  o livro Eduardo antes de ser Lourenço - Textos da Juventude, composto por páginas do Diário, poemas, projetos de livros, um romance começado e muitas reflexões produzidas até à idade dos 30 anos. Não se tratando, como assume a autora, de uma edição crítica ou de uma obra académica, este livro visa chegar a um leque diversificado de leitores, capazes de fazer dele o preâmbulo a um conhecimento mais profundo deste homem que nunca se cansou de pensar Portugal e as suas contradições. Quanto ao espólio, assegura-nos Luciana, ainda tem muitos segredos para revelar.

Luciana Leiderfarb



Como é que começou a investigação em torno dos escritos de juventude (até de adolescência) de Eduardo Lourenço?
Posso dizer que começou como tudo na minha vida profissional, nos últimos 25 anos: por acaso. Eu estava a fazer um trabalho para o Expresso, que pressupunha a necessidade de entrar no espólio de Eduardo Lourenço, depositado na Biblioteca Nacional, e ver que tesouros é que poderia lá encontrar. Tive a sorte de ser guiada, nessa tarefa, pelo João Nuno Alçada, que era a pessoa que voluntariamente estava a trabalhar no espólio. Um espólio tão grande que ocupava, na altura, toda uma sala. De repente, vi uma pasta que dizia 1940 e estavam lá os diários, os projetos, alguns deles começados, a maior parte deles inéditos. Fiz as contas e percebi que, em 1940,  Eduardo Lourenço [EL] tinha 17 anos. Estive uns meses ali metida e o artigo saiu, foi capa da revista, em dezembro de 2021. Depois numa conversa informal com o Guilherme Valente, da Gradiva (a editora que, há décadas, publica a obra de Eduardo Lourenço), falei-lhe nestes escritos e ele entusiasmou-se muitos.

Refere-se a estes textos como o movimento de recuo que permite o salto do atleta. 
Foi o que senti. Na verdade, conseguimos reconstituir a génese do pensamento de EL, publicando o maior número possível de textos do período até aos 30 anos, que é onde podemos considerar que termina a juventude de alguém e se inicia a maturidade.

Foi uma surpresa esta intensidade de produção e, ao mesmo tempo, a profundidade do pensamento?
A escrita era algo inerente ao Eduardo Lourenço. As entradas dos diários são muito frequentes e ele escrevia em todo o lado, caderninhos, folhas de papel avulsas, sebentas. O olhar dele é filosófico, é crítico, nunca é só uma contemplação. Tem um objetivo que é escrutinar e indagar.

Por aquilo que se percebe aqui, alguns dos seus grandes temas (metafísica, relação com Deus, morte) já estão presentes nos textos da juventude.
Sim, estão. Desde muito cedo, EL reflete muito sobre as questões da religião e  da fé ,que nem sempre coincidem.  Numa família tradicional, como a dele, estas posições causavam muita inquietação. A mãe, por exemplo, era uma católica tradicional e mostrava-se muito preocupada. EL nasceu no distrito da Guarda, o seu país era o Portugal das aldeias, muito salazarista e profundamente católico, no sentido em que jamais questionava a doutrina e as práticas da Igreja. Num dos primeiros textos reunidos neste livro, o autor diz que, na sua terra, o tempo era medido de acordo com o calendário das festas religiosas e da Natureza. Ele pôde ver isto com apenas 17 anos, quando fala do momento muito marcante em que um automóvel chegou à aldeia, introduzindo um elemento profano num espaço em que, até aí, tudo era determinado pela relação com o sagrado.

Avançamos sem medo para o adjetivo genial? 
É genial, de facto. Quando li isto, eu só queria tirar dali os dossiers e mostrar a alguém. De certo modo, foi isso que eu e as pessoas da Gradiva fizemos com este livro.

Podemos dizer que, com estes escritos, assistimos à construção de um pensamento e de uma linguagem?
Ele vai-se depurando, construindo ao longo dos anos. Ao princípio (exceção feita para aquele primeiro texto, que é impressionante ) encontramos escritos que são mais aforísticos. Depois, ele vai investindo em textos maiores, em reflexões mais fundamentadas. EL era um grande leitor, fazia listas do que lia, do que queria ler, do orçamento de que dispunha para comprar livros e até dos que queria oferecer. Havia muita literatura clássica, muita poesia, teatro. À medida que recebia estes inputs, a sua escrita e a sua reflexão iam-se aprofundando.

O que descobrimos aqui também é um EL poeta e aspirante a romancista. Para mim, devo dizer, foi uma total surpresa.
É muito interessante ver a determinação com que perseguia a ideia de se tornar escritor. Tanto queria sê-lo que começou um romance e várias peças de teatro.  Há imensos projetos, aqui publicamos aqueles que ele, de facto, chegou a desenvolver. Ele abria pastas e assinava Eduardo de Faria ou Eduardo Lourenço de Faria. Há momentos em que percebemos que muitos deles eram projetos longamente pensados. Posso dizer que temos no livro as melhores versões destas coisas.  No espólio, estão várias versões de trabalho e depois o texto que consideramos mais depurado e conseguido. A peça de teatro Spartacus é toda uma reflexão sobre o que é ser escravo, a liberdade e a falta dela e foi muito ensaiada no papel. 

Estamos perante a primeira “oficina” de escrita do autor?
Podemos dizer que é a “oficina” do Eduardo antes de ser Lourenço. 
Ele hesitou na escolha do nome com que, doravante, assinaria? Temos textos de Eduardo Lourenço e outros de Eduardo Lourenço de Faria.
Há vários ensaios. Ele procura-se, na verdade. O título que demos ao livro é irónico porque aos 17 anos, Eduardo já era ele. Os seus escritos da juventude já são qualquer coisa alcançada, embora ele não tivesse essa consciência. 

Há todo um capítulo dedicado à obra de Mário de Sá-Carneiro, pela qual ele se interessou bastante em determinado momento.
Sim, deu alguma atenção e de forma diferenciada. Mostrou-se muito crítico com a obra em prosa de Mário, Confissão de Lúcio. Apesar de muito novo, opôs-se à ideia feita de que este autor fosse tão bom na prosa como na poesia. E ousa estabelecer uma comparação com uma pequena novela de Dostoievski, que ele achava semelhante na forma e no tema, mas muito superior.

Pelo que conhece do espólio no seu conjunto, diria que ainda há muitos inéditos de EL?
Logo em 2021, quando fiz este trabalho para o Expresso, percebi que há muito trabalho para fazer sobre EL, embora a Gradiva esteja a trabalhar o autor há décadas (e muito bem)  e a Gulbenkian esteja a publicar as obras completas. Isto provoca-me dois sentimentos diversos: Por um lado, penso que  é uma maravilha e apetece-me mergulhar ainda mais neste espólio. Por outro, sem querer ferir suscetibilidades de ninguém, causa-me uma sensação de abandono. EL é um dos granes pensadores portugueses, mas Portugal não se apropriou dele.  Há países em que os autores estão muito presentes. Em Portugal isso não acontece. Tenho a certeza que se ele fosse espanhol ou francês, já estava traduzido para várias línguas. No entanto, quando eu estudei Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, não houve um só professor que me falasse dele. Descobri-o mais tarde, por mim mesma.

Tal como Saramago, também EL saiu da “ilha” para ver melhor a “ilha”. Escreveu tanto sobre Portugal e a portugalidade porque passou boa parte da sua vida em Vence, no Sul de França?
Ele não escolheu. Ele dizia que as coisas lhe foram acontecendo, foi a circunstância dele. Aconteceu o mesmo com o Vargas Llosa, que escreveu tanto sobre o Peru porque estava fora. O Eduardo Lourenço vive também essa experiência, mas não creio que a tenha procurado.. Era um homem de grande generosidade, que parecia não se irritar com nada. Fiquei muito sensibilizada ao saber que, na fase final da sua vida, ele tinha estado a trabalhar no espólio, na Biblioteca Nacional, na fase final, a ajudar a decifrar a caligrafia, que também evolui ao longo da vida. Contribuiu para identificar e localizar muitos textos. Têm a mesma textura temporal, algumas entradas dos diários têm datas, mas outras não.

Agora lê a obra dele de outra maneira? Há aqui muitas notas pessoais sobre o amor, o casamento, a família…
Posso dizer que sim. Há aqui textos que nos dão a ver o homem, o homem de família, como vivia as relações pessoais ou a morte. Também temos vários apontamentos sobre a vida universitária de Coimbra, em que se destaca o seu grande sentido de humor. Há, por exemplo, uma nota sua sobre uma aula de Lógica, em que confessa estar mais aborrecido do que uma posta de pescada. Mas também encontramos a génese da primeira Heterodoxia. Ele publica o primeiro volume em 1949 e nós vemos como ele pensa o livro antes deste existir.  No espólio estão as primeiras provas, há mesmo a revisão de provas feitas pelo Miguel Torga. 

Ou seja, este espólio traz pistas para o conhecimento de outros autores?
Há mesmo muitos tesouros. O que eu gostaria é que este livro contribuísse para que Eduardo Lourenço se tornasse mais conhecido no seu próprio país, mostrando que este homem pensou toda a vida sobre a sociedade do seu tempo. Gostaria que os académicos fizessem dele um instrumento de trabalho, mas que fosse lido também pelo cidadão comum, ajudando-o, assim, a compreender melhor Portugal através do homem que melhor o pensou.

Eduardo Antes de Ser Lourenço
Luciana Leiderfarb
Gradiva
448 páginas

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt