Retrato de casal com tartaruga
Adaptando uma novela de Mário de Carvalho, Júlio Alves propõe um conto romântico, ma non troppo: A Arte de Morrer Longe mergulha na banalidade do quotidiano, revelando a sua inusitada complexidade.
Muitas vezes de diz que o cinema português tem dificuldade em lidar com a banalidade (entenda-se: a complexidade) do quotidiano. A generalização não ajuda, mas é um facto que, ao longo das décadas, encontramos filmes que parecem bloqueados na "obrigação" de encenar esse quotidiano como uma parábola sobre tudo e mais alguma coisa, a ponto de as personagens não existirem a não ser como símbolos patéticos de uma "mensagem" política mais ou menos na moda. Dir-se-ia que A Arte de Morrer Longe, de Júlio Alves, é um filme que nasce marcado por esse assombramento - e também que acaba por enfrentá-lo com sentido de risco e invenção.
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A inspiração provém de uma novela de Mário de Carvalho, adaptada pelo realizador, acompanhando as atribulações do casal Arnaldo (Pedro Lacerda) e Bárbara (Ana Moreira), em processo de separação. Conhecemo-los através de diálogos em que tentam inventariar os haveres com que cada um vai ficar, desse modo avaliando o destino dos livros ou da cama de casal... Até que deparam com aquela que se vai transformar na questão central da sua rutura: quem vai ficar com a tartaruga?
Os múltiplos planos aproximados do sereno réptil anfíbio ajudam-nos a reconhecer que a questão está longe de ser secundária, acabando mesmo por se transformar no motor de um conto romântico estranhamente paradoxal. Assim, é verdade que a situação contém elementos (quase) de comédia que Júlio Alves vai organizando com delicada atenção e discreta ironia; mas não é menos verdade que tudo isso parece conter a ameaça de um desmoronamento emocional que, além do mais, Pedro Lacerda e Ana Moreira interpretam em tom de suave minimalismo (raro num cinema frequentemente enredado em facilidades "telenovelescas").
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Compreende-se, por isso, que A Arte de Morrer Longe encene o casal - aliás, o trio que Arnaldo e Bárbara formam com a tartaruga - como um mundo à parte. As personagens que com eles se cruzam, como a mãe de Arnaldo ou os polícias que o interrogam, são meros percalços dramáticos, figurantes de uma história cuja vibração afetiva lhes escapa, mas tenho dúvidas que o seu tratamento algo caricatural beneficie a coerência interna do próprio filme.
O mesmo se poderá dizer em relação aos peixes "oníricos" com que o filme sugere a perturbação que contamina o olhar de Arnaldo - são, a meu ver, sublinhados dispensáveis. De facto, A Arte de Morrer Longe é especialmente brilhante quando "nada" acontece, levando o espectador a sentir que a banalidade das situações parece regida pelo riso suspenso de um fantasma itinerante.
Francamente invulgar, por vezes fascinante, é o modo como as imagens integram camadas de luz e reflexos, nomeadamente através do metódico tratamento das superfícies vidradas. Nesse aspeto, a direção fotográfica de Paulo Castilho distingue-se como um notável exercício de observação (apetece dizer: reinvenção) de um quotidiano que escapa a qualquer naturalismo televisivo - trata-se de celebrar a intensidade de uma genuína visão cinematográfica.

dnot@dn.pt
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