A primeira temporada de Perry Mason foi apenas OK. Uma história demasiado intrincada e sombria, mas com sólidos valores de produção e um herói perfeitamente concebido numa mistura de desmazelo íntimo e habilidade profissional. O suficiente para garantir o chamariz. Esperava-se, por isso, que a segunda temporada, a existir (já que passaram quase três anos), apostasse essencialmente no charme tristonho de Matthew Rhys, o ator na pele do detetive privado titular que se torna advogado no final dessa primeira temporada. E porém, verdade seja dita, há mais mundo para além de Rhys neste segundo capítulo que chega agora à HBO Max: Perry Mason, a "nova" série, ganhou foco narrativo e alargou o seu interesse na caracterização individual dos membros da equipa de Perry (já lá vamos), retirando ao protagonista aquela aura isolada de motor da ação. Ou seja, é desta que nos enche as medidas..Quando surgiu em 2020, pela mão dos showrunners Ron Fitzgerald e Rolin Jones, aquilo que mais incomodou alguns dos fãs da série original Perry Mason (1957-1966) - escrita por Erle Stanley Gardner e protagonizada por Raymond Burr - foi a postura abandalhada do protagonista, que logo no primeiro episódio vemos a comprar uma gravata na morgue, em vez de ir à loja como as pessoas normais. Pois bem, o Perry de Matthew Rhys não nasceu para ser uma respeitosa evocação do Perry de Burr, da mesma forma que a série não é um mero exercício de nostalgia. Procura antes a sua própria identidade e renovação dentro desse universo conhecido, do qual se mantêm os nomes das personagens principais apenas como referência simbólica (falamos afinal de um grande sucesso televisivo). Do drama jurídico original nem sequer se preservou a estrutura de "cada episódio um caso", correspondendo a resolução de um único caso a uma temporada inteira (oito episódios). Naturalmente, casos mais complexos..Antes de entrar em detalhes, importa esclarecer que a mudança sentida entre a primeira e a segunda temporadas de Perry Mason está sobretudo relacionada com uma alteração no corpo criativo da série. A saber, Ron Fitzgerald e Rolin Jones foram substituídos por outra dupla de showrunners, Jack Amiel e Michael Begler (responsáveis pela série The Knick), numa tentativa de corrigir as fragilidades da temporada anterior, menos capaz de segurar a dimensão do enredo que criou..Nesse sentido, Perry Mason regressa com outra confiança, embora no que toca ao herói seja o mesmo homem de alma amarrotada que vemos no ecrã. Alguém, nas palavras do próprio Rhys à publicação Esquire, que "está apenas a tentar manter a cabeça fria e descobrir o que quer na sua vida. Na primeira temporada estava um pouco perdido. Aliás, ele é sempre o outsider, nunca se encaixa em lugar nenhum. Vamos encontrá-lo aqui a tentar perceber se isto é realmente algo que não apenas quer fazer, mas que de facto é capaz de fazer.".O "isto" pode tanto referir-se à advocacia, em geral, como ao caso particular que o ocupa nesta temporada. De volta à Los Angeles de 1933, vários meses após o último caso mediático, deparamos com o protagonista e a sua assistente Della Street (Juliet Rylance) a exercerem a advocacia nos padrões mais amenos: a sua área agora é o Direito Civil. A parada sobe, no entanto, quando o descendente de um magnata do petróleo é encontrado morto, por homicídio, e a família dos acusados bate à porta de Perry em tom de súplica... Ele bem tenta resistir ao apelo de uma boa investigação criminal (que lhe faz falta na esfera desinteressante do Direito Civil), mas é persuadido pelo fator humano desses clientes sem posses. Tanto Perry como Della são sensíveis à noção de Justiça Social, mesmo que a certa altura o assunto seja a "ilusão da justiça"....É preciso ter em conta que esta é a América da Grande Depressão, e os dois suspeitos mexicano-americanos que Perry vai defender em tribunal são personagens desse contexto histórico, numa cidade marcada por um imenso crescimento nas três décadas anteriores. Crescimento esse que não chegou à franja da população a que pertencem os jovens latinos, obrigados a viver num bairro de lata, antes de serem presos..À volta deste caso, que terá o seu próprio crescimento complexo, vão-se desenvolvendo personagens. Menos absorvida pela melancolia de Perry/Rhys, a nova temporada mergulha na intimidade terna e ambição saudável da parceira de gabinete Della/Rylance, não só enveredando pelos caminhos secretos da expressão da sua homossexualidade, como revelando uma grande futura advogada naquele que será um dos momentos altos da série, com Della a conduzir um interrogatório no tribunal (coisa raríssima para uma mulher naquela época)..Também Paul Drake (Chris Chalk), o polícia negro que despiu a farda para se juntar à equipa de investigação de Perry, tem mais tempo de antena nestes episódios, entre o trabalho no terreno e a situação familiar. De resto, as personagens secundárias como o detetive Shea Whigham (Pete Strickland), amigo de Perry, são sempre bem-vindas para acrescentar diversão e amargura, em igual medida, a um cenário gerido com elegância jazzística..De facto, elegância é algo que pode definir Perry Mason desde o início. Uma série que, do guarda-roupa ao design de produção, sabe criar um ambiente de época sugestivo, com as cores e temperatura adequadas a cada cena. Esse cuidado passa também pelo elenco, a começar por Matthew Rhys, que traz para a personagem célebre - diferente da original, claro - o porte dramático que mostrou em The Americans, noutra personagem igualmente marcada por um conflito interior. Ingredientes indispensáveis num drama que em boa hora encontrou a nuance certa dentro da escola do noir, com afinação narrativa e espírito prático de justiça..dnot@dn.pt