Realismo em tom iraniano
A estreia da semana, Os Irmãos de Leila, tem assinatura de Saeed Roustaee, um dos jovens talentos do cinema do Irão: encenando uma teia de dramas familiares, ele expõe um sistema de relações tensas entre os valores da tradição e a circulação perversa do dinheiro.
Não será possível encarar a estreia de Os Irmãos de Leila, o magnífico filme do iraniano Saeed Roustaee revelado, em maio, na competição do Festival de Cannes - onde recebeu o prémio FIPRESCI, atribuído pela federação internacional de críticos de cinema -, sem lembrarmos que a luta pela defesa dos direitos das mulheres continua a marcar muitas notícias que nos têm chegado do Irão.
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Os Irmãos de Leila existe, aliás, antes do mais, como um poderoso retrato de uma personagem feminina, Leila, interpretada pela brilhante Taraneh Alidoosti (que conhecíamos através do cinema de Asghar Farhadi, por exemplo em O Vendedor). Sem esquecer que, em junho, as autoridades do Irão proibiram a difusão do filme no país alegando que a exibição em Cannes não tinha recebido a devida autorização estatal (há dias, a propósito da sua passagem no Festival de Kerala, na Índia, a imprensa indiana referia que essa proibição se mantém).
Cerca de um mês antes de Cannes, mais de duas centenas de atrizes iranianas, incluindo Taraneh Alidoosti e Niki Karimi (figura muito popular enquanto atriz e realizadora), tinham divulgado um abaixo assinado denunciando a violência contra as mulheres no seio da indústria cinematográfica do Irão. Numa notícia publicada no site da Aljazeera (3 abril), pode ler-se esta citação do documento: "Não só não existe qualquer mecanismo para impedir figuras poderosas de cometer atos de violência, como há um princípio não-escrito que normalizou a violência contra as mulheres em espaços de trabalho, sem qualquer consequência para os agressores."
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O drama do dinheiro
Tendo em conta o dramatismo deste contexto, importa não ceder aos lugares-comuns típicos de algum jornalismo "contestatário". Assim, a urgência política e moral de erradicar as formas de violência contra as mulheres (no Irão ou em qualquer outro lugar) não é razão ideológica, muito menos artística, para rotular de "panfleto" qualquer filme direta ou indiretamente pontuado por tais temas. Ou ainda: a "moda" mediática de reduzir esses mesmos temas a uma lamúria paternalista sobre as vítimas acaba por ignorar a complexidade dos problemas, em última instância banalizando as causas que diz defender.
Percorrendo a teia narrativa de Os Irmãos de Leila, é preciso também sublinhar que nada do que aqui encontramos decorre de qualquer processo de vitimização "obrigatória" das mulheres. Aliás, se há maneira sugestiva, ainda que esquemática, de definir o sistema de relações filmado por Roustaee será, justamente, a partir de um fundamental contraste comportamental: legitimada pelos valores sociais dominantes, a autoridade "natural" das personagens masculinas - o pai e os quatro irmãos de Leila - tem como contraponto a condição de Leila enquanto verdadeira guardiã da família, incluindo no modo como decide enfrentar os seus desesperados problemas financeiros.
Alheio a qualquer generalização gratuita dos "homens" e das "mulheres", Os Irmãos de Leila é mesmo um filme sobre as finanças de uma família. A certa altura, Leila e os irmãos percebem até que o seu dinheiro está ameaçado pela instabilidade dos mercados financeiros, subitamente abalados por um "tweet" publicado por Donald Trump... A circulação global do dinheiro ecoa, afinal, de modo perverso, as convulsões decorrentes das relações entre os velhos e os novos no seio da família: a possibilidade de o pai de Leila vir a ser reconhecido e proclamado como novo patriarca da família (numa cena impressionante pela sua dinâmica física e emocional) acaba por expor uma drástica clivagem de valores entre gerações.
Individual e coletivo
Há poucos meses, as salas portuguesas tinham acolhido a anterior longa-metragem de Roustaee, A Lei de Teerão (2019), sobre a atividade de uma brigada policial empenhada em desmantelar um circuito de drogas. Também aí encontrávamos uma riqueza dramatúrgica que não será alheia ao facto de Roustaee gostar de acumular as tarefas de argumentista e realizador. Em ambos os casos, somos confrontados com um ziguezague de situações em que as atribulações dos grupos coexistem com a metódica caracterização dos indivíduos.
Daí o reencontro com alguns talentosos atores proporcionado por Os Irmãos de Leila, incluindo Navid Mohammadzadeh (notável em A Lei de Teerão) e Payman Maadi (nosso conhecido de vários filmes de Farhadi e também da prodigiosa mini-série The Night Of, criada por Richard Price e Steve Zaillian, disponível na HBO). Este é, realmente, um cinema de atores, no sentido em que os enigmas e evidências das personagens encontram uma expressão invulgar na consistência de todas as performances.
No limite, poderemos dizer que Roustaee, autor da geração mais jovem do cinema do Irão (nasceu em Teerão, em 1989), é mais um exemplo modelar de um desejo de realismo que tem vindo a contaminar as mais diversas geografias e culturas. A sua resistência à formatação mediática de comportamentos e situações começa na paixão pelas singularidades de cada personagem - e, por isso mesmo, envolve um respeito extremo pelo trabalho dos respetivos intérpretes.

dnot@dn.pt
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