Rainer Werner Fassbinder: O cineasta do medo e das nossas almas
Quando revisitamos as memórias das grandes convulsões que abalaram várias cinematografias europeias ao longo das décadas de 1960/70, dando origem às "novas vagas", quase sempre começamos pela França. O que, entenda-se, faz todo o sentido: Godard, Truffaut, Rohmer & Cª. foram, realmente, decisivos na definição de uma modernidade cujos ecos e influências os anos não apagaram. Mas algumas vezes esquecemo-nos dos alemães... Daí a importância histórica e o valor cinéfilo do ciclo dedicado a Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), organizado pela Leopardo Filmes, proporcionando uma revisão - sem dúvida para muitos espectadores uma descoberta - do trabalho daquele que foi o nome central do "novo cinema alemão".
O legado da sua vida breve é impressionante: 37 filmes e 18 peças de teatro ao longo de treze anos de trabalho, envolvendo também televisão, vídeos, encenações e diversas participações como actor em filmes seus ou de outros cineastas. A decorrer até 26 de outubro em salas de várias cidades - incluindo Lisboa (Nimas), Porto (Teatro do Campo Alegre e Cinema Trindade), Coimbra (TAGV), Braga (Teatro Circo) e Setúbal (Auditório Charlot) -, o ciclo é constituído por oito títulos, em cópias restauradas, realizados ao longo da década de 1970. O mais conhecido desses títulos, O Casamento de Maria Braun (1979), centrado numa mulher cujo marido combate na Segunda Guerra Mundial, pode servir de símbolo exemplar do seu envolvimento com os temas, contradições, fantasmas e silêncios da história da "mãe" Alemanha.
O Casamento de Maria Braun acabou mesmo por ser consagrado como uma assinatura "oficial" da obra de Fassbinder, tornando-se um dos seus maiores sucessos, de algum modo potenciado pela distribuição internacional com chancela de um grande estúdio de Hollywood (United Artists). Entre as distinções que recebeu incluem-se um Urso de Prata de melhor actriz para Hanna Schygulla, no Festival de Berlim, a melhor realização nos Prémios do Cinema Alemão e também, entre nós, o Grande Prémio do Festival da Figueira da Foz de 1979.
Maria Braun permanece como uma das mais complexas personagens na filmografia de Schygulla, ela que ficou como presença emblemática da obra de Fassbinder, tendo sido por ele dirigida em 23 produções de cinema ou televisão. Sendo da mesma geração de Fassbinder (Schygulla nasceu em 1943), ambos pertenceram a uma geração que, como ela disse numa entrevista ao jornal The Guardian (27-03-2017), reagiu contra a resposta dos mais velhos à herança do nazismo: Fassbinder "estava contra o facto de as pessoas serem educadas para fazer o que lhes mandam". Daí o reconhecimento de uma tragédia visceral que Schygulla recorda assim: "O facto de muita gente se ter entregue a Hitler sugeria uma forte tendência alemã para a obediência."
No caos social do pós-guerra, indissociável de um complexo e agitado relançamento da economia, Maria Braun é aquela que se define como a "Mata Hari do milagre económico". Foi a primeira de três admiráveis figuras femininas a que Fassbinder dedicaria a chamada "trilogia da República Federal Alemã". Seguiram-se Lola (1981), com Barbara Sukowa, e A Saudade de Veronika Voss (1982), com Rosel Zech, esta a penúltima longa-metragem do cineasta - a estreia da derradeira, Querelle (1982), baseada em Jean Genet, ocorreu cerca de três meses depois da morte de Fassbinder.
Na cronologia do ciclo Fassbinder (baptizado "A Fúria de Viver"), O Casamento de Maria Braun emerge, assim, como um objecto em que, directa ou indirectamente, desembocam as narrativas antes ensaiadas. O filme mais antigo do ciclo, Cuidado com Essa Puta Sagrada (1971), pode ser visto como uma espécie de balanço, tão dramático quanto irónico, do primeiro período da obra de Fassbinder como autor "independente" no interior da indústria alemã e europeia. Nele encontramos uma equipa de cinema tentando concluir um filme em terras de Espanha, enfrentando problemas de orçamento e ausência de película - o título refere-se a uma entidade "sagrada" que não é um ser humano, mas sim a própria câmara de filmar.
Na sua encenação assumidamente teatral, Cuidado com Essa Puta Sagrada pode ser, de facto, uma sugestiva porta de entrada no universo de Fassbinder, desde logo pelo modo como mobiliza intérpretes muito diversos e contrastados. Lá encontramos o próprio Fassbinder, Schygulla e Werner Schroeter (1945-2010), cineasta alemão da mesma geração que abre o filme contando uma fábula protagonizada por uma personagem do universo de Walt Disney (o cão Pateta), envolvendo várias sugestões sarcásticas, quer sexuais, quer políticas.
É, além do mais, um dos filmes de Fassbinder com imagens de Michael Ballhaus (1935-2017), director de fotografia que viria a distinguir-se também na produção dos EUA, sobretudo em vários títulos de Martin Scorsese (por exemplo, A Última Tentação de Cristo e Gangs de Nova Iorque, respectivamente de 1988 e 2002, foram por ele fotografados). Sem esquecer que a música original é assinada por Peer Raben (1940-2007), compositor ligado a mais de uma dezena de longas-metragens de Fassbinder, incluindo a primeira, O Amor É Mais Frio que a Morte (1969) e a última, Querelle.
Os dois títulos de 1972 que podemos agora ver ou rever são exemplares pelas diferenças que expõem, de algum modo sublinhando o facto de a filmografia de Fassbinder, ainda que ancorada numa elaborada visão crítica do seu país e das convulsões das relações humanas, nunca se ter encerrado no formalismo de um "modelo" único, fosse ele temático ou estético.
O Mercador das Quatro Estações encena as muitas atribulações de um vendedor de fruta (Hans Hirschmüller) que na cidade de Munique em meados da década de 1950, tenta reconstruir a sua vida num contexto em que todas as relações, familiares e sociais, íntimas ou económicas, surgem tocadas por algum tipo de assombramento. O mesmo se poderá dizer de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, por certo um dos títulos mais conhecidos do realizador, mas desta vez num espaço assumidamente teatral (na sua origem está a peça homónima de Fassbinder) em que apenas evoluem personagens femininas: em torno da designer de moda Petra (Margit Carstensen), deparamos com um turbilhão de afectos em que tudo se faz e refaz, das ilusões do sexo à utopia da arte - além de Schygulla, o filme conta ainda com a presença de Irm Hermann (1942-2020), outra personalidade essencial no universo de Fassbinder.
1974 é também um ano com uma fundamental dupla de filmes: O Medo Come a Alma e Effi Briest (a que, entre nós, foi acrescentado o subtítulo Amor e Preconceito). No primeiro, encontramos um par amoroso claramente atípico: uma viúva alemã (Brigitte Mira) e um trabalhador de origem marroquina (El Hedi Ben Salem), separados por mais de vinte anos de idade - sendo um retrato contundente dos preconceitos que a sua ligação atrai, é também, à sua maneira, uma consagração da vertigem utópica que o amor pode conter, aliás explicitamente inspirada no trabalho de um cineasta fundamental na formação de Fassbinder, o alemão Douglas Sirk, citando em particular dois dos seus filmes de Hollywood, All That Heaven Allows (1955) e Imitation of Life (1959).
Quanto a Effi Briest, nele encontramos um verdadeiro tratado sobre o que possa ser a adaptação de um romance - persiste, aliás, como uma lição modelar face a muitas variações dependentes do mais preguiçoso academismo televisivo. A partir da obra homónima de Theodor Fontane (publicada em 1894), Fassbinder encena a odisseia afectiva, conjugal e social de uma mulher do século XIX (interpretada, uma vez mais, pela admirável Schygulla), integrando, dir-se-ia que de forma didáctica, o essencial das palavras escritas por Fontane, quer nos diálogos, quer na narrativa em off - é o próprio Fassbiner que dá voz a essa narrativa.
O ciclo completa-se com Mamã Küsters Vai para o Céu (1975), inédito no circuito comercial português, e Roleta Chinesa (1976). No primeiro, observando com cirúrgica precisão a dramática decomposição de uma família, também fortemente devedor da herança de Sirk, encontramos Ingrid Caven, outro nome lendário do cinema alemão (também do teatro e do canto); o segundo tem qualquer coisa de farsa trágica, já que a fragilidade dos laços familiares é exposta através da acção de uma criança.
Parafraseando um dos títulos deste ciclo, talvez possamos dizer que Fassbinder colocou em cena as variantes de um medo que, em última instância, revela a fragilidade das nossas almas. O que é, neste contexto, a alma? Nada que se possa encerrar em qualquer princípio religioso ou determinismo moral - tão só o que vivemos sem saber dizer, ou dizemos ignorando o que estamos a viver.