Rafael Gallo: “Eu não estaria aqui se não fosse o prémio Saramago”

Rafael Gallo: “Eu não estaria aqui se não fosse o prémio Saramago”

Em passagem por Portugal, escritor brasileiro Rafael Gallo conversou com o DN sobre a reescrita da obra Rebentar, recém lançada no país e a sensação de escrever após o fim do governo Bolsonaro.
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Enquanto escritor brasileiro que publica em Portugal, qual a sua visão sobre o discurso de que o português do Brasil é menos correcto do que o de Portugal? Alguns pais reclamam que os filhos usam os termos que assistem em vídeos na internet.
Confesso que é novo pra mim, talvez minha posição mude com o longo do tempo. Eu não tenho reservas com traduções, como mudar o livro para o português de Portugal. Existem diferenças e não tenho problema nenhum em reconhecê-las. O que eu não gosto é que as diferenças sejam colocadas como se fosse uma hierarquia. Por exemplo, quando vemos algumas pessoas preconceituosas aqui que renegam o português do Brasil, como se fosse errado. E não é. Não é que se eu escrevesse mais corretamente ele seria o português de Portugal, é o português brasileiro correto dentro da língua culta. Eu gostaria que as pessoas se abrissem pra isso. É outro sabor, eu consigo entender, de vez em quando tem um termo e outro que não sabe, mas vai no Google e entende. Eu acho isso dos dois lados, não podemos ter indisposição com o português de Portugal também.
Existem planos para lançar novos livros?
Tem um livro de contos que vai sair em maio de 2024 no Brasil, o nome é Cavalos no Escuro. Tem também um romance que estou no começo, mas foi um ano tão agitado que não consegui avançar por falta de tempo e concentração. Não posso prometer nada ainda.

Rafael, o que mudou na sua carreira desde que recebeu o Prémio José Saramago?
Mudou muita coisa. Algumas coisas são objetivas e mensuráveis, como ter o livro publicado em Portugal, ter uma entrada no país, agora com o Rebentar, também publicado aqui. Claro que tudo isso aumenta o capital simbólico, sou muito convidado para mais eventos e sinto que as pessoas nos levam mais a sério. É uma cadeia de capitais simbólicos, que são realmente subjetivos, mas que mudam muito e que é muito meu. É toda uma experiência de vida. Eu não estaria aqui se não fosse o Prémio José Saramago. Foi um enorme reinício, porque, inclusive, a premiação veio em um momento em que eu estava muito desanimado e em crise, quase jogando a toalha. Eu não tinha conseguido publicar o livro e toda a crise que tivemos no Brasil, com a pandemia e o governo Bolsonaro, tudo muito alterado, parecia que tudo que a gente escrevia não servia mais pra esse mundo novo. Além disso, o Prémio Saramago era o meu maior sonho, eu fui de um extremo ao outro. Eu acho que quando eu pensar nisso, daqui a 20 ou 30 anos, é provável que toda a minha vida, onde quer que tenha chegado, de alguma forma eu vou poder conectar com o agora, como os livros que vier a escrever, tudo vai ter essa bifurcação da vida. Então, acho que eu, Rafael de 2023, vou fazer coisas que ainda vou creditar a esse prémio.
Como você se sente com a publicação da obra Rebentar em Portugal?
Estou muito feliz que chegue a mais lugares, é meu primeiro romance e especialmente pelo tema, que de certa forma aparece em todos os livros, que é a questão do vínculo. É uma história muito importante pra mim. 
Você reescreveu o mesmo livro. O que motivou a reescrita e qual a principal diferença entre as edições?
O texto tinha algumas coisas que me incomodavam. Eu estava com uma pequena vergonha do texto, sabe?. Queria ter a oportunidade de pegar o livro e arrumar, diminuir os diálogos longos, as repetições e excessos. Foi com a história do prémio que a editora aceitou o que eu propus. Aí vem de novo o capital simbólico, se eu tivesse feito essa proposta um mês antes do prémio Saramago, dificilmente alguém aceitaria. Eu fiquei muito feliz pela oportunidade. Outra coisa importante é que a minha visão de mundo mudou nos últimos anos. Eu sentia que as personagens estavam muito corretas, queria personagens mais complexos e dinâmicos, com sombras. Quem ler as duas versões sente que a história é a mesma, mas com um espírito diferente.
Sobre as personagens, como descreve a Ângela?
Nunca ninguém me pediu essa resposta. Eu acho que ela é uma mulher que além da tragédia de perder o filho, tem o peso dos papéis sociais que são colocados em nós e conviveu com esses papéis de uma forma mais consonante. Ela lida com todas essas tragédias, com essa dor que vai ocupar grande parte da vida dela, mas acho que esse momento, que é quando ela decide encerrar a busca pelo filho, é hora de descrevê-la de uma outra maneira. A Ângela passa a ser ainda mais corajosa, muito do respeito, de um carinho pelo que ela sente e quer, além de uma coragem de reconstruir a vida. Nesse momento precisa ter menos o papel de mãe e ser mais a própria Ângela.
E a relação dela com o marido, Otávio?
É uma relação de muito amor e companheirismo. Em um trecho eu cito uma estatística de que 80% dos casais que perdem filhos se separam e resolvi justamente pra mostrar o quanto é uma exceção a relação deles. Porque o que eu vi em visitas e consulta em materiais jornalísticos, os homens saem fora. Eles deixam, não buscam e lutam tanto, os casais se separam, os homens recomeçam a vida e as mulheres ficam. O Otávio quebra esse papel, ele fica ali com a Ângela nessa realidade que não é confortável. Seria mais fácil encontrar outra pessoa, divertida, que vai viver uma vida muito mais agradável. Mas ele não foi, o casal se ajuda, um não culpa o outro, se consultam nas decisões. É uma relação muito amorosa.
Como você descreve a relação entre as mulheres e mães na história?
É um livro muito centrado nas mulheres e quase todas são mães. É interessante, há uma poeta brasileira, a Mar Becker, que escreve muito sobre mulheres e esse fio invisível que eu acho que existe. Eu não posso dizer que parte é cultural, biológico ou social, e por outro lado não acho que certas questões fisiológicas é o que vai definir tudo. Mas acho que essas conexões existem e estão no livro. 
Você sempre aborda nas entrevistas a política. Como analisa a transição entre os governos no Brasil?
É outra coisa que é difícil explicar a parte subjetiva. Eu sinto e sei que muita gente sente, é que vai fazer quase um ano que podemos tocar a nossa vida sem sentir que estávamos sendo violentados de alguma forma todos os dias. Ao longo do governo Bolsonaro era assim, todo dia havia pelo menos uma notícia que nos deixava abatidos, tontos. Quando você estava começando a se recuperar vinha outra coisa, era terrível. Hoje em dia, mesmo quando eu paro pra pensar, em termos práticos até queria que tivesse mudado mais, mas eu sei que a situação era complicada. Mas eu lembro que nunca mais tive aquilo que eu sentia todos os dias. Era um abatimento muito pesado, de perder o rumo, de sentar pra escrever e se questionar ‘porque eu to escrevendo sobre um músico no meio de uma pandemia em que morrem centenas de milhares de pessoas e o chefe da nação faz piada’. Hoje o escritor senta pra escrever, o cozinheiro senta pra cozinhar. O professor entra na sala pra dar aula, antes era uma guerra moral. Essa guerra moral não sumiu totalmente, mas está dando pra seguir com a vida e fazer as nossas coisas, ser a gente mesmo. Porque a exaustão que vivemos foi uma derrota, reverter isso já é bom. Não estamos mais exaustos, é uma grande vitória.

"O que eu não gosto é que as diferenças sejam colocadas como se fosse uma hierarquia. Por exemplo, quando vemos algumas pessoas preconceituosas aqui que renegam o português do Brasil, como se fosse errado."

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