Tentar descrever ou analisar um determinado filme em função da obra anterior do respetivo autor pode ser tão sugestivo quanto equívoco. No caso da italiana Emma Dante (nascida em Palermo, em 1967), de quem se estreia esta semana o título mais recente - Misericórdia (2023) -, somos tentados a dizer que há no seu trabalho uma teatralidade que funciona quase como um efeito de assinatura. Porquê? A resposta será, antes do mais, puramente quantitativa: a sua escassa filmografia contrasta com a abundância do seu trabalho como encenadora de teatro e ópera - como exemplo, lembremos apenas que ela já montou a Carmen, de Bizet, em Milão, no Teatro alla Scala.Aliás, as tarefas de realização de Emma Dante não podem ser dissociadas dessa imensa atividade teatral: tanto Misericórdia como o anterior As Irmãs Macaluso (2020) têm como base textos e espetáculos teatrais de sua autoria. Há em ambos os filmes uma contundência dramática que envolve a paciente observação de um universo feminino tecido de muitas dores, aqui e ali pontuado por fogachos de alegria. As irmãs Macaluso viviam assombradas pela súbita revelação da morte no interior do seu universo de cumplicidades quase tribais; algo de semelhante acontece em Misericórdia, centrado num grupo de três prostitutas de uma aldeia esquecida da Sicília, acolhendo o desamparado Arturo, corpo adulto e cérebro de criança, que elas tratam como um filho condenado a uma existência de bizarros carinhos e muita violência física e emocional.Misericórdia tem suscitado alguns paralelismos com a herança neorrealista que, em boa verdade, é transversal às zonas mais diversas da produção italiana. Não será necessário sublinhar que, para qualquer cineasta de Itália, a conjuntura atual está longe de ser uma “duplicação” dos tempos em que Roberto Rossellini ou Vittorio De Sica assinaram os seus filmes mais emblemáticos. O certo é que prevalece uma atenção da câmara aos dados mais físicos do quotidiano em que redescobrimos a vibração dos corpos e, de um modo ou de outro, os ecos simbólicos das respetivas experiências.Emma Dante sabe administrar essa intensidade física (realista, sem dúvida) com a energia de uma encenação em que as situações mais caóticas são tratadas através de elaboradas coreografias (teatrais, justamente) que aproximam o testemunho social do calculado artifício da fábula. Nesta perspetiva, será fundamental sublinharmos o valor da elaborada composição de Simone Zambelli no papel de Arturo: no limite, a vulnerabilidade física e emocional da personagem parece atrair as marcas enigmáticas do sagrado. O que, enfim, nos leva a citar também a influência visceral de Pier Paolo Pasolini, confirmando que Emma Dante conhece bem a pluralidade das suas heranças.