Pensemos em cineastas como Jean Renoir, Alain Resnais ou Jacques Rivette – o seu trabalho reflecte o modo como os temas, formas e personagens do mundo do teatro pontuam toda a história do cinema francês. No caso de Valeria Bruni Tedeschi (nascida em Turim, Itália, a 16 de novembro de 1964), essa proximidade começa por ser profissional. Isto porque a sua formação é de natureza teatral, já que ela integrou um grupo de jovens intérpretes que, na década de 1980, frequentaram Les Amandiers, a lendária escola de representação de Nanterre, nos arredores de Paris, dirigida por Patrice Chéreau (1944-2013). O seu filme Les Amandiers nasce das memórias apaixonadas dessa época – revelado no Festival de Cannes de 2022, chega amanhã às salas portuguesas.Seja como for, importa resistir a qualquer descrição determinista de Les Amandiers. Não estamos perante uma dessas derivações biográficas, típicas da mais medíocre televisão, em que todas as memórias se esgotam na ilustração de um “destino” há muito escrito e decidido. Será também pouco pertinente reduzir o filme a um painel de uma juventude à procura da sua identidade “colectiva” – o subtítulo português, Jovens para Sempre, adaptado da versão internacional (Forever Young), não deixa de evocar a lendária canção de Bob Dylan (editada em 1974, no álbum Planet Waves), mas afasta-nos do cerne dos dramas que Valeria Bruni Tedeschi coloca em cena.Porquê? Porque Les Amandiers não é uma mera crónica sobre a aprendizagem do teatro, antes um panfleto poético sobre o risco de escolher as artes da representação – enfim, pelo menos sob a singularíssima direcção de Chéreau. Aliás, Les Amandiers reflecte também a herança do próprio Chéreau enquanto realizador de cinema, ele que nos legou uma filmografia fascinante, integrando títulos tão emblemáticos como A Rainha Margot (1994), por certo uma das composições mais radicais de Isabelle Adjani, Intimidade (2001), um “desvio” pela língua inglesa, e o sublime, tão mal conhecido, Gabrielle (2005), com Isabelle Huppert.Qual é, então, o desafio enfrentado pelos jovens candidatos a actores? Viver uma vida entregue ao labor metódico e extenuante de “encontrar” uma personagem e, mais do que isso, expor o resultado desse encontro a uma plateia de olhares anónimos? Sim, sem dúvida, mas sem esquecer a perturbante dimensão desse labor, directa ou implicitamente apontada pelo próprio Chéreau. A saber: o ponto de fuga de tudo isso é a loucura – ou apenas a sua companheira silenciosa, isto é, a morte.. Entenda-se: não estamos perante uma elegia fúnebre. E não haverá muitos filmes como Les Amandiers abençoados por tão cristalino desejo de viver e amar o teatro – penso inevitavelmente em clássicos como A Comédia e a Vida (Renoir, 1952) ou O Amor Louco (Rivette, 1969). Encontramos essa vibração paradoxal nas cenas dos ensaios de Platonov, de Tchekhov, sob a direcção do próprio Chéreau, interpretado com gélida contundência por Louis Garrel; ou ainda na sequência breve, mas fulcral, da visita à escola de Lee Strasberg, em Nova Iorque.Mas se a representação de um outro – que, para todos os efeitos, nasce das entranhas do actor ou da actriz – arrasta um risco pessoal, isso decorre do entendimento do teatro, não como um “espelho” da vida, mas sim uma continuação da vida por outros meios. Daí a angustiada beleza do par Stella/Étienne, magnificamente interpretado por Nadia Tereszkiewicz/Sofiane Bennacer – ela lutando por vencer a sua vulnerabilidade perante o olhar dos outros (admitamos que será uma projeção da própria realizadora), ele vivendo a sua toxicodependência como um fantasma trágico de uma vontade de superação e afirmação de uma verdade sem limites.À flor da peleO filme de Valeria Bruni Tedeschi distingue-se, de facto, por uma vibração à flor da pele sustentada por um elenco exemplar – citemos ainda Micha Lescot, intérprete de Pierre Romans, outra das personagens identificada pelo nome verdadeiro (co-fundador, com Chéreau, de Les Amandiers). Podemos mesmo acrescentar que este é um prolongamento “temático” de outro dos seus filmes como realizadora, o bem chamado Actrizes (2007), em que, ao contrário de Les Amandiers, também interpretava uma personagem.Ponto importante para que tudo isto resulte: a notável direção fotográfica de Julien Poupard, utilizando uma câmara digital (Arri Alexa Mini) para reencontrar as cores e o grão das imagens clássicas da película de 16mm. O realismo que daí resulta é também maravilhosamente teatral.