Quando Mastroianni e Bardot se amaram no ecrã
Convenhamos que é dos filmes mais esquecidos da carreira de Louis Malle e, curiosamente, aquele que regista um dos encontros mais particulares do seu cinema: em Vida Privada, de 1962, Brigitte Bardot e Marcello Mastroianni interpretam dois amantes perseguidos pelos fotógrafos, de Genebra a Spoleto. O alvo dos paparazzi é, bem entendido, Bardot, ou Jill (o nome da personagem), uma jovem que em Paris trocou o ballet pelo cinema e ascendeu demasiado depressa ao star system. Enquanto Mastroianni assume o semblante grave de um artista italiano que a conhece primeiro na qualidade de marido de uma amiga, depois ressurgindo como o homem apaixonado que tentará protegê-la da selvajaria dos flashes – mesmo que não consiga salvá-la daquele clarão furtivo que lhe provoca a mais poética das mortes, ao som de Verdi e em câmara lenta...
A propósito de câmara, é ainda neste filme que se ouve um narrador relatar em off o enigma da lente diante de Bardot: "Entre aquele rosto e aquela máquina, algo aconteceu. Um encontro imprevisível, um contrato misterioso que faria de Jill – sem que ela o tivesse pedido – uma estrela, um fenómeno, um monstro”. Precisamente porque Vie Privée se centra no poder da imagem da atriz que, na vida real, e naquele início da década de 60, alcançara o auge da popularidade, vendo-se tomada pela dolorosa vertigem mediática, já depois de Simone de Beauvoir lhe ter dedicado um ensaio, escrito para a revista Esquire (Brigitte Bardot and the Lolita Syndrome, 1959), cuja leitura de excertos durante a rodagem se revelou útil para Malle... e muito divertida para Bardot.
Dentro de um esquema de autoficção (que o coargumentista Jean-Paul Rappeneau tentou explorar ao máximo, baseando-se em situações vividas pela própria Brigitte), Vida Privada não favoreceu especialmente “o outro ator”, que esteve mesmo em vias de desistir, pouco antes de começarem as filmagens, por considerar o seu papel menor... E, enfim, reconhece-se que Mastroianni tem aqui um espírito e postura menos espontâneos do que o repórter sensacionalista de La Dolce Vita (1960), interpretado à distância de apenas dois anos, e não ajuda o facto de a sua voz ter sido dobrada (por Michel Auclair). Ainda assim, nada de trágico.
Consta também que uma certa indiferença mútua, entre Mastroianni e Bardot, terá deixado o realizador em apuros, nas suas palavras, sentindo-se incapaz de “fazer com que duas pessoas na tela estejam loucamente apaixonadas quando se odeiam na vida real”. Mas isto não é verdade: será possível ignorar a química aveludada com que os olhos dos amantes se cruzam durante um acesso de pânico dela? Ou a alegria infantil com que correm para os braços um do outro numa escadaria em Spoleto?
Apesar das vicissitudes atrás da câmara, Louis Malle conseguiu captar algo de único entre duas estrelas nascidas no mesmo dia, com uma década de diferença. E mais: conseguiu fazer com que Brigitte Bardot nos recordasse Audrey Hepburn – de guitarra na mão, a tocar e cantar Moon River sentada à janela em Boneca de Luxo (1961) –, ao tocar e cantar, sentada na cama, Sidonie, um poema de Charles Cros.