Qual a cor das canções?
Desde os tempos heróicos de A Filha do Mineiro (1980), o filme de Michael Apted que valeu a um Óscar a Sissy Spacek pela sua composição da cantora country Loretta Lynn, a biografia de grandes nomes da música popular tem suscitado o cruzamento de diversos géneros cinematográficos, do melodrama ao... musical. Em anos recentes, quase se tornou uma moda, retratando figuras que vão de Édith Piaf (La Vie en Rose, 2007) a Elvis Presley (Elvis, 2022). O novo I Wanna Dance With Somebody, sobre Whitney Houston (1963-2012), esta semana nas salas portuguesas, é um dos exemplos mais sóbrios de tal tendência.
Será que a escolha do título de uma das canções mais célebres de Whitney Houston para título do filme terá sido a escolha mais eficaz para a sua identificação (comercial)? É apenas uma dúvida "conceptual" que não afeta as qualidades do filme. Aliás, poderá até argumentar-se que tal escolha reflete um princípio fulcral na organização do argumento do filme e na realização de Kasi Lemmons. A saber: a valorização das canções, na sua integralidade, evitando uma utilização "decorativa" em formato de videoclips mais ou menos acelerados. Inevitavelmente, o destaque vai para o espantoso medley que Whitney Houston interpretou em 1993, nos American Music Awards, incluindo I Loves You, Porgy (de Porgy and Bess), And I Am Telling You I"m Not Going (de Dreamgirls) e I Have Nothing, esta uma das suas baladas mais populares, incluída na banda sonora do filme O Guarda-Costas (1992), de Mick Jackson, que protagonizou com Kevin Costner.
O impacto, não apenas musical, mas realmente dramático, das canções obriga a outro destaque: a notável interpretação da inglesa Naomi Ackie (nascida em Londres, em 1991). De acordo com informação da produção do filme, no essencial foram usadas gravações da própria Whitney Houston, considerando que não havia maneira de "repetir" o timbre e as nuances da sua voz. Sem esquecer que Naomi Ackie sabe mesmo cantar como se pode observar na cena de abertura, integrada no coro da New Hope Baptist Church, em Newark, sob a direção da mãe (a também brilhante Tamara Tunie). Trata-se, afinal, de um artifício corrente na história do musical - para nos ficarmos por uma memória clássica, lembremos que em My Fair Lady (1964), obra-prima de George Cukor, Audrey Hepburn é dobrada por Marni Nixon.
Enfim, o valor das canções cruza-se com uma questão marcante na evolução da própria Whitney Houston, quando foi acusada de não respeitar a cor da sua pele, interpretando canções demasiado "brancas"... A personagem encenada por Kasi Lemmons responde que, para ela, as canções "não têm cor" - são "canções" e isso basta-lhe.
Dito de outro modo: mesmo quando abraça as convenções do género "biográfico", I Wanna Dance With Somebody sabe preservar as singularidades da sua personagem central, evitando encerrá-la em qualquer modelo de "símbolo" ou "bandeira". E como a tradição do "filme musical de Natal" já não é o que era, sabe bem reencontrar uma proposta que, pelo menos, conhece a sua herança.
dnot@dn.pt