Patrick Wang: “Acredito que há na América liberdade e oportunidade reais”
Sei que Checkford, onde se passa A Bread Factory, exibido no Festival Outsiders 2024, em Lisboa, é um lugar fictício, mas o que podemos aprender sobre a sociedade americana através desta pequena cidade? É um pouco misturada racialmente, mas não muito. Parece ser liberal, porque há um casal assumido de lésbicas, com certo protagonismo social.
Talvez comece por responder que se trata apenas de um lugar que reconheço. Ou seja, é pequeno, o que é sempre mais fácil para mim, enquanto escritor, enquanto realizador, pensar nele. Mas tem razão, há um elemento liberal no facto de haver um casal de lésbicas a comandar naquele lugar. Mas também há pessoas que não aprovam, que pensam de forma diferente. E, portanto, para mim, Checkford parece-se muito com alguns lugares onde vivi, que simplesmente não são o que se espera. E podem ser qualquer mistura de coisas. E se há alguma tolerância, ao mesmo tempo, na vida privada, há muita intolerância. Mas expressam-se em momentos diferentes.
A América é um país enorme e muito diverso. Não é, portanto, possível dizer que Checkford se trata de uma cidade americana típica?
Não sei se penso dessa forma. Penso que há elementos nela que poderiam ser representativos. Quando penso em algumas pequenas cidades do Texas, obviamente que as coisas são muito diferentes à superfície. Mas penso na dinâmica de como a política se desenrola, ou como aqueles que são um pouco diferentes são mal vistos por certas pessoas. Acredito que estas dinâmicas são semelhantes em muitos locais.
Deixe-me tentar um exercício. Olhando para esta pequena cidade fictícia, imagina estas pessoas a votar democrata ou republicano?
De certa forma, não tenho de imaginar. Pensando bem, filmámos numa cidade real, Hudson, no estado de Nova Iorque. E o norte do estado de Nova Iorque é um sítio muito invulgar. Na verdade, há um centro cultural lá gerido por um casal de lésbicas há muitos anos. Mas também é território fortemente republicano em muitos lugares. Estamos a falar do estado de Nova Iorque, não da cidade. O estado é mais conservador, especialmente no Norte. Mas acho que no final, tudo se resume a coisas muito locais. Porque estive em Nova Iorque e, por vezes, sofri mais racismo ou outro tipo de discriminação do que sofri alguma vez no Texas profundo. Depende das pessoas que nos são próximas. As médias são uma referência, ilustram a realidade, mas as nossas experiências são pessoais e vêm uma de cada vez. E descobri que, mesmo na cidade de Nova Iorque, por vezes, podemos enfrentar muita estreiteza de vistas.
Deixe-me também perguntar sobre a sua experiência de ter sido criado no Texas. Foi em Houston ou numa pequena cidade perto?
Foi em Houston, e depois mudámo-nos para um subúrbio. Mas sabe, vivendo no Texas, viajamos sempre muito. Visitávamos cidades pequenas, e eu tinha amigos em cidades pequenas com quem passava muito tempo.
Para si foi imediata a diferença entre viver no Texas e viver no Massachusetts, quando se mudou para estudar no MIT?
Há algo que realmente adoro no Texas: acho que há lá um verdadeiro carinho entre as pessoas. E, por vezes, é mais difícil incomodar os texanos do que qualquer outra pessoa. Mas não saberia disso pelos políticos texanos. Parecem muito sensíveis e muito perturbados com o mundo. Mas acho que, para os texanos comuns, vale quase uma mentalidade de agricultor: há um limite para as coisas que pode mudar no mundo, por isso é preciso aprender a aceitar todos os tipos de atos de Deus. Mas antes de ir para o Massachusetts, vivi na Argentina durante algum tempo como estudante de intercâmbio. E acho que isso realmente me preparou para um mundo diferente.
Como foi o contacto com essa sociedade latino-americana? Algum choque cultural? A Argentina até tem fama de ser muito europeia.
Sim, é muito europeia. Mas eu não vivia em Buenos Aires, e sim em Corrientes, que é uma espécie de Texas da Argentina. Muitas vacas e muito campo. Estudei espanhol durante alguns anos, mas isso nunca nos prepara para o sotaque argentino. E então de início fiquei desamparado. E há algo de especial quando se está desamparado. Dependemos das outras pessoas. Da generosidade delas. Pessoas que não têm de nos ajudar, mas ajudam.
E foi essa a sua experiência na Argentina?
Foi. Conheci essa generosidade. E acho que isso leva a ter uma espécie de fé nas pessoas. Sabemos que não serão todas. Mas sabemos que há pessoas que nos ajudam quando precisamos. E que se preocupam com as outras pessoas quando veem que estão desamparadas.
Apesar da sua experiência pessoal como um asiático-americano, americano de segunda geração, a etnicidade não parece ser um assunto forte nos seus filmes. Não é algo que o atraia?
Atrai quando atrai. Por exemplo, no meu primeiro filme, In the Family, no qual atuo, interpreto um asiático-americano no Tennessee. Aprendi que em muitos momentos da vida, quando estamos perto dos amigos, de pessoas que nos conhecem, a raça não é um problema. Mas depois, quando é um estranho que encontra a pessoa, a raça pode tornar-se um problema. São muitos os nossos elementos de identidade, e acredito que estão presentes na maior parte da nossa vida quotidiana. Podem até não ser visíveis, ou evidentes, mas depois num momento muito crítico e numa nova interação tornam-se algo importante. Então, a etnicidade é algo que entra e sai das nossas vidas.
Mas não imagina fazer filmes sobre questões asiático-americanas? Alguns realizadores afro-americanos, por exemplo, produzem sempre filmes sobre temas negros.
Quero fazer filmes sobre a sociedade americana em geral. Talvez para algumas pessoas a identidade esteja sempre em primeiro plano. Mas para mim é só uma parte da nossa vida. Na maior parte, o resto é universalmente humano.
As suas raízes estão em Taiwan. Ainda tem contacto com a ilha?
Sim. Já lá fui algumas vezes. E gostei. Comi muito bem. E há uma verdadeira simpatia entre os taiwaneses que cada vez mais aprecio.
E esta ideia de Taiwan ser hoje uma sociedade democrática construída na cultura chinesa é algo que tem um valor especial?
É uma questão histórica muito complicada. Porque tinha de perguntar de que Taiwan exatamente está a falar. E há tantas experiências históricas taiwanesas diferentes.
Reconhece a ilha dos seus pais como sendo agora democrática?
Agora é muito diferente do que era há alguns anos. O meu pai é aquilo que se pode considerar o estereótipo do pai asiático. Estoico em alguns aspetos. Mas lembro-me de quando apanhámos o avião de regresso a Taiwan pela primeira vez depois de o país se ter tornado uma democracia, depois de o regime militar ter sido abolido, e ouvimos os anúncios no avião em taiwanês, ele ficou muito emocionado. Apenas por causa da supressão da língua taiwanesa e de outros elementos locais durante a lei marcial. Acho que esta democracia significou muito para ele e para os taiwaneses em geral. E penso que a razão pela qual a democracia prospera de uma forma tão interessante em Taiwan é porque ali é muito nova. Cheguei a falar com o meu pai sobre Barbara Jordan. Ela era maravilhosa. Foi uma das congressistas durante a Administração Nixon. Durante as investigações da comissão da Câmara dos Representantes ao caso Watergate, ela tornou-se uma protagonista. Foi uma grande voz nesse questionamento pelo povo. E o meu pai assistiu àquelas audições, às audições de Nixon, com espanto. Porque ele cresceu num país e numa época em que a sua cabeça não podia estar mais alta do que a de outra pessoa. Tinha de fazer uma vénia quando passavam por ele. E vê esta mulher que faz todas aquelas perguntas ao presidente dos Estados Unidos. Ele a viver a democracia aqui e depois a vivê-la quando ela era uma coisa nova em Taiwan. Tentei ver pelos olhos dele. Fez-me apreciá-lo de uma forma muito diferente.
A sua formação é como economista. Como economista, como vê a América hoje em dia? Porque algo que me impressiona, visto da Europa, é que a economia está a correr muito bem, mas os americanos não estão cientes disso. Continua interessado em economia?
Tenho muito interesse pela economia. O que as pessoas estão mais habituadas a fazer é falar de economia. Mas não sei se sabe, os economistas costumavam ter um nome diferente. Costumávamos ser chamados de filósofos mundanos. Porque pensaríamos em coisas como a vida. Ter uma vida rica. E uma vida rica não apenas em termos de dinheiro, mas em termos do que uma sociedade sente. Em termos do que sentimos pelos outros. E depois pensamos num sentido muito mais amplo de prosperidade. E acho que isso ainda está muito presente nos meus filmes. Mesmo que não sejam sobre finanças e nem este outro tipo de coisas em que pensamos ligadas à economia. Quando estudava economia, uma coisa que me chamava muito a atenção, e isso foi nos anos 90, era a desigualdade de rendimentos. E nós pensávamos nessa altura, nos anos 90, que isso atingia extremos e que era uma loucura chegar onde tínhamos chegado. Porque estávamos a comparar com os anos 70. Mas olhe para as desigualdades agora. Não creio que pudéssemos ter previsto que iriam aumentar ainda mais. E acho que essa desigualdade é o que está por detrás de muito do que está a falar. Quando há esta sensação geral de prosperidade, mas a desigualdade entre as pessoas é tão grande que gera descontentamento.
É óbvio para si quando viaja pelos Estados Unidos que existem muitas desigualdades? Apesar da prosperidade. Sabe que a América é agora muito mais rica do que a Europa Ocidental?
Sim, é óbvio. Vamos por exemplo pegar numa indústria que parece ser uma indústria frívola, a minha indústria, o cinema, o teatro, realizadores, encenadores, atores. Recentemente tivemos greves dos atores e dos argumentistas. E o que se vê é que há algumas pessoas que conseguem viver muito bem, que são muito bem pagas, que é quase como ganhar a lotaria como ator. Mas todos os outros são extremamente precários. E essencialmente todos estes artistas estão a subsidiar as nossas artes com as suas vidas. Aceitam outros empregos, fazem outras coisas para conseguirem sobreviver nesta indústria, para o nosso bem. E acho que é um reflexo do que muitas pessoas fazem também noutros setores. Trabalham muito duro. Para terem uma família, aceitam dois, três empregos. Ouve-se falar muito sobre a criação de empregos nos EUA. Muitas destas estatísticas não têm em conta o facto de as pessoas terem dois ou três empregos. Então fala-se de termos todos estes novos empregos, mas na realidade, uma pessoa que costumava ter um emprego tem agora dois empregos. Portanto, é um quadro complicado. E penso que, seja qual for a política, é perturbador que tantos jovens sintam que este é o destino das suas vidas. Que há menos oportunidades do que as que tiveram os pais. Que há menos probabilidades de ter uma família, de ter uma casa. Essas coisas que antes pareciam fazer parte do curso de uma vida humana comum.
Mas, de qualquer forma, a América ainda é o grande íman do mundo. Muitas pessoas ainda querem imigrar para a América. Veem a América como uma espécie de Eldorado. A sua família é um exemplo disso. O que acha que ainda atrai na América? É porque se formos uma pessoa trabalhadora, uma pessoa enérgica, podemos ter sucesso lá? Ainda é possível?
Acredito que ainda é muito possível. Mas também acho que parte disso é provavelmente mito. Um mito que permanece. Mas, ao mesmo tempo, acredito que há na América liberdade e oportunidade reais. E quando uma pessoa vem, vive de acordo com esse mito. De certa forma, se tivesse o mesmo sentido de possibilidade no país de onde veio, isso também poderia ter acontecido lá. Quem sabe?
Há alguma mensagem política nos seus filmes ou trata-se apenas de cinema, de arte?
Acho que falo sobre a vida. E na medida em que as nossas vidas são políticas, como já falámos anteriormente, quando a identidade faz parte da nossa vida, então passa a fazer parte do filme. E chega um momento em que a política limita as possibilidades na nossa vida. E isso é um problema. E depois torna-se uma questão de política.
Toda a gente diz que a América foi muito influenciada por Roma. Da arquitetura à ideia de república defendida pelos pais fundadores. Para si, os gregos também são muito importantes. Sei que encenou Medeia. Quão importante é esta cultura clássica para si?
Acho muito interessante ter mencionado ambos porque ainda não a abordei nos meus filmes, mas Roma está muito presente na minha mente. E quando falamos sobre as questões que estamos a abordar, como a desigualdade e os direitos, temos muitos níveis disso ao longo da história romana.
A América inicialmente era inspirada pela República Romana, mas há muito que reflete mais o Império Romano. Mas também vê a influência dos gregos antigos na sociedade americana?
A minha janela para muito dos gregos antigos é através do drama. Há pessoas muito engraçadas que perguntam: porque é que escrevem sempre sobre Tebas? E isto acontece porque é muito mais fácil observar outra sociedade e falar sobre ela do que olhar para nós próprios. Em vez de dizer, olhe para si, vou antes falar de Tebas. E desta forma conseguimos ver uma sociedade de forma mais clara. E penso que talvez seja por isso que me situo nestas cidades fictícias ou nestas cidades distantes de onde poderíamos ter uma associação. Não falo de Nova Iorque. Não falo de algum outro lugar do qual tenhamos uma impressão muito específica. É mais como uma tela em branco, onde as personagens preocupam-se em pensar na nossa vida cívica. Que tipo de sociedade deveríamos ser? Que coisas são tão importantes que as nossas vidas são alteradas por querermos essas coisas? Muito boas lições dos gregos.