Para acabar de vez com a banalização do Mal
Neste Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, os canais TVCine estreiam um documentário de investigação em torno do julgamento histórico daquele que foi considerado o arquiteto do genocídio judeu. A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann, de Yariv Mozer, dá a ouvir Adolf Eichmann na sua verdadeira e tenebrosa versão, pela primeira vez.
"Não me arrependo de nada. Cada fibra do meu ser resiste a dizer que fizemos algo de errado. Não (...). Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, eu teria ficado satisfeito e diria: "Ótimo. Exterminámos um inimigo." Nesse caso, teríamos cumprido a nossa missão." Estas são apenas algumas das frases chocantes que o documentário A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann (hoje, 22h00, no TVCine Edition) revela ao longo de três episódios, que cruzam momentos semelhantes de um conjunto de entrevistas de Adolf Eichmann a Willem Sassen, em 1957, com uma visão sobre o mediático julgamento que começou a 11 de abril de 1961, em Jerusalém. São frases pronunciadas pelo homem que também disse: "Nada me irrita mais do que um tipo que mais tarde nega as coisas que realizou". Exatamente o que o próprio fez no tribunal. Negou ponto por ponto qualquer responsabilidade na chamada Solução Final, declarando-se um mero funcionário a cumprir ordens superiores.
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Dentro de uma redoma de vidro à prova de bala, esta postura ilegível de Eichmann - que não seria mais do que uma boa performance de ator a disfarçar o homem que outrora usara a farda com orgulho - encontrou um olhar analítico, e não intencionalmente desculpabilizador, do lado da filósofa Hannah Arendt, que, ao assistir ao julgamento, produziu a famosa e polémica teoria da "banalidade do Mal". A mesma que é questionada agora neste documentário do israelita Yariv Mozer, munido de material que, se tivesse sido do seu conhecimento na altura, provavelmente faria Arendt hesitar perante a própria ideia de que Eichmann encaixava num perfil mais ou menos comum a muitos nazis que trabalhavam dentro do regime. Isto é: apenas homens burocratas, sem dimensão ideológica nas suas ações.
Parte da dinâmica de A Confissão do Mal passa pelo contraste absoluto entre aquilo que Eichmann disse, ou melhor, negou em tribunal e o que se ouve nas gravações (precisamente, palavras de um fervoroso idealista). Mas o possível impacto perturbador que se anuncia no início de cada episódio, com o aviso "Não aconselhado a todos", tem sobretudo que ver com o contexto das ditas gravações, recriado para o efeito dramático do documentário. Mozer ilustra os excertos áudio, que contêm a voz de Adolf Eichmann, com um cenário e atores que visam mergulhar o espectador o mais possível nos detalhes do ambiente em que decorreram as conversas gravadas pelo jornalista nazi Willem Sassen - a sua filha, Saskia Sassen, surge como orientadora dessas visões, sendo a criança que vemos espreitar atrás da porta os homens na sala do pai, e que agora, uma socióloga com idade respeitosa, fala daquela figura que transbordava energia negativa. Há mesmo um momento das gravações em que se escuta, em fundo, essa menina a brincar perto da sala; o tipo de sons estranhos que, se não houvesse uma reconstituição da cena, não seriam identificados em rigor.
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Gravador que aparece nas recriações das conversas (com a voz de Eichmann).
Recuamos então a 1957, Buenos Aires, Argentina, para onde muitos nazis se dirigiram depois da guerra, entre eles Eichmann, com outra identidade. Aí submeteu-se às referidas conversas, uma série de entrevistas com Sassen, cuja motivação pessoal, enquanto nazi, era... obter provas de que Hitler não seria o responsável pelo extermínio dos judeus. Foi só quando percebeu a vaidade e satisfação com que Eichmann se "confessava" que decidiu dar trela à loucura de levar até ao fim aquilo que, afinal, fez desmoronar a crença. Por sua vez, a intenção do entrevistado era que as gravações só fossem divulgadas após a sua morte, para fins de "investigação científica". Durante o julgamento, Eichmann teve sempre a confiança de que esta prova estrondosa nunca seria ouvida naquela sala de audiências. E não foi.
Eis então outra pergunta a que o documentário procura responder: porque razão as gravações nunca chegaram às mãos do procurador-geral de Israel, Gideon Hausner, apesar de este ter conseguido transcrições das entrevistas? Naturalmente, aqui Mozer entra no território da conjetura, sondando as complexas questões diplomáticas à volta do julgamento. E não o faz de forma leviana: há todo um conjunto de historiadores e outros especialistas, para além de testemunhas, que reforçam o traço de investigação deste trabalho aprofundado.
Apesar de uma narração em off algo televisiva que por vezes fere o tom sóbrio de A Confissão do Mal (por certo, um encargo da co-produtora americana MGM), pode dizer-se que, num todo, funciona como um thriller. Com a particularidade do esforço de informação: o realizador nunca dá por adquirido que todas as personagens desta história são bem conhecidas, e por isso todas as peças são encaixadas para que o retrato de Eichmann e os acontecimentos que o envolveram ganhem uma expressão completa, sem deixar de alimentar outras reflexões futuras.
No dia em que se assinala a memória das vítimas do Holocausto, esta estreia no pequeno ecrã não se constitui apenas como uma curiosidade histórica para picar o ponto. Há, de facto, uma componente humana que atravessa os discursos e torna presente aquilo que não pode ficar arrumado no passado, nem pode ser diminuído como "banalidade do Mal". Como bem resumiu Mozer ao jornal The New York Times, referindo-se às gravações: "Esta é a prova contra os negacionistas do Holocausto e uma maneira de ver a verdadeira face de Eichmann." Disso não haja dúvidas.
dnot@dn.pt
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