Pablo Milanés - Eternamente de amores

<em>Yolanda</em> ou <em>Yo pisaré las calles nuevamente</em> são algumas das mais de 400 canções de amor e luta que Pablo Milanés nos deixa. O artista cubano morreu esta terça-feira, aos 79 anos.
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Pode resumir-se a carreira de um músico a uma canção de êxito mundial, uma canção como Yolanda que gerações e gerações de pessoas dançaram, ou cantaram, de peito aberto, no êxtase do enamoramento? Pode, mas no caso de Pablo Milanés, o cantautor cubano que morreu de cancro, esta terça-feira em Madrid, aos 79 anos, seria também uma grande injustiça já que a sua obra atravessa o último meio século, sempre sob o signo da insatisfação pessoal, artística e política.

Nascido na cidade cubana de Bamayo a 24 de fevereiro de 1943, era há muito uma das vozes mais reconhecidas da música ibero-americana. Juntamente com artistas como Silvio Rodríguez e Noel Nicola, foi um dos fundadores do movimento Nueva Trova, que, em plena década de 1970, inspirou outros artistas sul-americanos, que cantaram composições suas, como Chico Buarque, Gal Costa, Armando Manzanero, Mercedes Sosa, Fito Páez ou salseros como Andy Montañez ou Gilberto Santa Rosa. Em Espanha, que vivia o estertor final do franquismo, também jovens artistas como Joan Manuel Serrat, Joaquín Sabina, Luis Eduardo Aute, Ana Belén ou Víctor Manuel cantaram canções suas ou colaboraram com ele. Com Sabina (que o considerava um dos seus melhores "compadres"), fez vários duetos ao vivo e em disco que hoje são registos históricos da música deste período, nomeadamente com temas como La Canción Más Hermosa del Mundo e Yolanda. Em Portugal, também Luís Represas cantaria, em dueto com Milanés, a canção, Feiticeira.

Mas o êxito nunca foi uma poltrona confortável para Pablo Milanés, que punha alta a fasquia da auto-exigência. Em entrevista recente à Rádio Nacional de Espanha dizia: "A música é tudo para mim, a melhor forma que encontro para expressar-me, a melhor maneira de sentir e mesmo de pensar. Creio que nós, músicos, contamos com essa outra linguagem muito especial, que nos permite comunicar". Muito jovem ainda, musicou alguns dos poemas do poeta nacional cubano, José Martí. Mesmo algumas das suas grandes canções de amor (Yolanda, dedicado à sua segunda mulher, Yolanda Benet, e mãe de três das suas filhas, El breve espacio ou Ámame como soy), conjuga géneros e sonoridades que abarcam o jazz, a rumba, o bolero ou mesmo a música antiga, nomeadamente maneirista e barroca europeia, de que encontrava ecos na música tradicional cubana, como disse na referida entrevista à RNE. Ao longo da sua carreira, ganhou, entre outras distinções, dois Grammy Latinos e um Prémio Nacional de Música de Cuba.

A insatisfação estética estendeu-se também à sua posição política, o que lhe valeu muitos dissabores. Afirmava-se "revolucionário até ao fim da vida", o que se traduziu no seu repertório: Chegou a compor uma canção dedicada à legalização do Partido Comunista Espanhol, dirigido pelo histórico Santiago Carrillo, durante a transição para a democracia no país vizinho, e uma outra, Yo pisaré las calles nuevamente, em que denuncia a violência do golpe de Pinochet, no Chile, em setembro de 1973. Mas nunca deixou de manifestar o seu desagrado com vários aspetos da política de Fidel de Castro. O que, em plena década de 1960, o atirou para os campos de trabalhos forçados da Unidade Militar de Ajuda à Produção (UMAP), onde eram "internados" religiosos, homossexuais e todos aqueles que não se enquadravam nos chamados "parâmetros revolucionários". Mais tarde, mostraria a sua tristeza pelo facto de nunca lhe ter sido pedida desculpa, tanto mais que, disse em entrevista ao diário espanhol El País, em 2015, "este não foi um ato isolado" mas parte dum processo "estalinista que prejudicou intelectuais, artistas e músicos".

A viver em Espanha (na cidade galega de Vigo) desde 2014, Milanés foi, já este ano, um dos subscritores de um manifesto da sociedade civil pela aplicação de políticas de mudança no seu país "dentro de um espírito de soberania, inclusão e respeito pelo ser humano, sua dignidade e aspirações mais básicas". Mas este ano, que acabaria por ser o último, revelar-se-ia muito difícil para o músico, que a 30 de janeiro, sofreu a perda da sua filha, a cantora Suylén Milanés Benet, que morreu aos 50 anos, vítima de AVC. Meses depois, em junho, reencontrou-se com Havana, que acolheu a sua última atuação em Cuba. A alegria dos milhares de espectadores foi ensombrada pela sua chegada ao palco em cadeira de rodas, que expunha o agravamento do seu estado de saúde. Milanés compôs mais de 400 canções e publicou cerca de 40 álbuns, para além de ter composto música para sete longas-metragens e mais de 30 documentários e séries de televisão.

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