Depois da vitória de Anora nos Óscares, pode dizer-se que o cinema independente americano está mais vivo do que nunca? Não será taxativo. Até porque outros filmes independentes venceram o Óscar; ainda que Anora represente, de facto, uma lógica de produção genuinamente independente. O certo é que, pela sua natureza “à margem”, esses filmes não nos chegam com a regularidade desejável – se não vencem Óscares ou Palmas de Ouro, sujeitam-se ao esquecimento suave da distribuição, na secreta esperança de algum dia serem retirados do limbo. Tem sido essa, no fundo, a missão do ciclo Outsiders, que à sua 4ª edição continua a renovar o interesse em filmes adormecidos no circuito, que nunca chegaram a estrear nas salas portuguesas: a partir desta terça-feira, até dia 16 de março, há 12 títulos para descobrir no Cinema São Jorge, em Lisboa. Sempre de olhos postos nas diversas expressões que atravessam a face da América contemporânea, o Outsiders tem a grande virtude de oferecer, ano após ano, pela mão do programador Carlos Nogueira, ângulos realmente originais no panorama do cinema independente, que tocam o coração dessa América, em vez de se refugiarem numa qualquer linha de arte abstrata. São, por isso, filmes com temperatura humana e modos distintos de leitura da experiência de um país tão rico em falhas de alma como em buscas de terapia. Comédia, ação e etc. Nesta edição, o tema “o outro” procura assim refletir sobre a atração e o medo que paira na(s) vivência(s) da alteridade. O que pode sugerir abordagens sobretudo dramáticas... mas não necessariamente. Logo a abrir o ciclo, Thelma, de Josh Margolin (hoje, 21h30), é um ótimo exemplo de comédia talhada para desmistificar a velhice: com 93 anos, a personagem do título está disposta a enfrentar o desconhecido do outro lado do telefone, depois de ser alvo de uma burla. Qual Tom Cruise de scooter elétrica, esta avó de pêlo na venta troca a paz doméstica pelo registo de “ação em Los Angeles” e proporciona um conto animado que nunca resvala para a diversão sem neurónios. Vindo de Sundance, o filme beneficia, pois, da graça natural da sua protagonista, June Squibb, estrela octogenária de Nebraska (2013), que aqui confirma uma consistência de estilo. Mas há mais. Também Fremont, de Babak Jalali (dia 15, 19h), vem em tom de comédia dramática doce, ou “jarmuschiana”, como tem sido amplamente apelidada, e conta a história de uma ex-tradutora das forças armadas americanas no Afeganistão, que, agora trabalhadora imigrante de uma fábrica de biscoitos da sorte em Fremont, só quer curar as insónias e encontrar algo semelhante a um sonho na vida real. Uma miniatura a preto e branco, com charme melancólico, cujo único ponto de contacto com a outra comédia do ciclo, Ingrid Goes West, de Matt Spicer (dia 14, 21h30), é a solidão das personagens principais; no último caso, Aubrey Plaza veste a pele de uma jovem viciada nas redes sociais, que se muda para Los Angeles atrás de uma influencer (Elizabeth Olsen) do Instagram, sem controlo sobre as próprias intenções obscuras... Cinema acutilante, de cores fortes, a contrastar, por exemplo, com Something, Anything (dia 13, 19h), do convidado desta edição do Outsiders, Paul Harrill, que é um belíssimo drama, muito recomendável, centrado numa mulher que se afasta das expectativas da sociedade, naquilo que é um processo puramente íntimo, silencioso, quase impercetível de tão delicado. Harrill filma tudo com uma sensibilidade e subtileza fora de série – questão que não escapará à sua masterclass (dia 13, 17h), e que também se sente na sua outra longa-metragem em exibição, Light from Light (amanhã, 21h30). .Destaca-se ainda a sessão de encerramento, com Ghostlight, de Kelly O’Sullivan e Alex Thompson (dia 16, 19h), um ensaio sobre a tristeza, analisada a partir de um pai de família, trabalhador da construção civil que descobre numa companhia de teatro o reflexo entre a arte e a vida; e Earth Mama, de Savanah Leaf (dia 13, 21h30), um olhar firme e atencioso sobre os passos de crescimento de uma jovem mãe solteira, no seio da comunidade negra carenciada. A vitalidade do género dramático também passa por uma família de origem haitiana em Mountains, de Monica Sorelle (dia 14, 19h), e dá lugar ao thriller em Most Beautiful Island, de Ana Asensio (dia 17, 17h), retrato de sobrevivência de uma mulher estrangeira não documentada na América. Já o documentário e a não ficção estão representados em três obras: A House is not a Disco, de Brian J. Smith (amanhã, 19h), Landfall, de Cecilia Aldarondo (dia 16, 17h), e Gasoline Rainbow, de Bill e Turner Ross (dia 15, 21h30), dupla repetente nas edições anteriores. Caso para dizer que o Outsiders vai fixando autores.