Lily Gladstone em "The Unknown Country", o rosto conhecido deste "Outsiders".
Lily Gladstone em "The Unknown Country", o rosto conhecido deste "Outsiders".D.R.

"Outsiders": A família segundo o cinema independente americano

Iniciativa da FLAD, o ciclo "Outsiders" está de regresso ao Cinema São Jorge, em Lisboa, para uma 3.ª edição centrada no tema da(s) família(s) americana(s). A partir desta segunda feira, e até 5 de maio, imagens de uma cinematografia independente vão dar prova da sua vitalidade.
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Porventura um dos temas mais transversais do cinema, mas também aquele que produz as mais diversas representações, a família é o conceito-chave da nova edição do Outsiders, ciclo organizado pela FLAD - Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, que nos últimos anos tem trazido ao Cinema São Jorge uma janela indiscreta para uma certa linhagem de filmes: aqueles que escapam à imediata lógica comercial. O que não significa tratar-se de um cinema pouco dado à relação com o grande público. Pelo contrário, a partir de amanhã, a responder à pergunta “O que é, hoje, a família americana?”, a mostra Outsiders vem dar conta do que andamos a perder no lado marginal do cinema americano, acabando por revelar, mais uma vez, que a distância entre a grande máquina de Hollywood e os independentes não é assim tão grande, nem tão rígida. Ou não fosse a protagonista do filme de abertura Lily Gladstone, atriz recentemente nomeada para um Óscar, pelo filme de Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores.

À conversa com o programador do Outsiders, Carlos Nogueira, fizemos notar que, desde a 1.ª edição, no final de 2021, o ciclo manteve um diálogo espirituoso com os Óscares, fosse porque nomes como Chloé Zhao e Greta Gerwig surgissem entre outros completamente desconhecidos, ou porque a 2.ª edição tenha refletido sobre os géneros cinematográficos, numa celebração da linguagem e dos atores que habitam os dois mundos. Foi de propósito?

“Sendo a ideia do ciclo mostrar aquele cinema que está fora do radar - e mostrá-lo porque merece ser visto, apesar desse ostracismo a que é votado - a relação com os Óscares é puramente acidental, mas não deixa de ser curiosa. O melhor exemplo é que, quando selecionei a Chloé Zhao na 1.ª edição, ainda não havia Nomadland [Óscar de Melhor Filme em 2021], porque essa seleção foi feita em 2019, altura em que eu já tinha visto o The Rider [filme exibido no ciclo] e percebi que não estava no horizonte da distribuição em Portugal. Só depois disso apareceu o Nomadland no Festival de Veneza, em 2020, etc. Portanto, quando mostrámos The Rider, já ela estava consagrada e tinha feito um filme da Marvel, Eternals.”

Este ano repete-se então a graça de trazer ao Outsiders, logo no seu arranque, um filme que nos dá a conhecer Lily Gladstone antes da nomeação para o Óscar - ou melhor, um filme que não vem demonstrar qualquer mudança de perfil, mas sim trazer à evidência a nobreza serena desta atriz nativa americana, que não precisa de muito para deixar a sua marca.

Algo que o programador faz questão de sublinhar: “Eu, antes, só a tinha visto no Certain Women [de Kelly Reichardt], um papel de que gostei imenso, e que é reduzidíssimo em termos de falas, muito à base do silêncio e dos olhares - li algures que o Scorsese a escolheu graças a esse filme. E depois, no filme do Scorsese, é de novo uma personagem bastante... não espetacular, digamos, como o DiCaprio e o De Niro são. É uma atriz notável, e este filme que vamos passar comprova isso mesmo.”

O filme chama-se The Unknown Country, é realizado por Morrisa Maltz, e funciona como uma verdadeira crónica da face de uma certa América, na medida em que a sua personagem principal, que se faz à estrada para ir a um casamento, quando ainda está a lidar com a perda da avó, se converte num espelho para a alma das pessoas com quem se cruza: usando um dispositivo “documental”, Maltz vai focando histórias humanas diversas que revelam a bondade dos estranhos. Isto a par da magnífica solidão da protagonista.

Logo neste início do ciclo o luto está muito presente, havendo outros filmes que o exploram com semelhante delicadeza. É o caso de Driveways, de Andrew Ahn, um belo conto de subúrbio sobre uma mãe solteira (Hong Chau), que, após a morte da irmã, terá de tratar do assunto da casa que herdou, enquanto o filho pequeno faz amizade com o veterano da porta ao lado (um maravilhoso e vetusto Brian Dennehy); e também de The Grief of Others, um dos dois filmes de Patrick Wang neste Outsiders (e já lá vamos...), que mergulha numa tragédia familiar, resgatando a luz interior das personagens num processo de pintura emocional com mão de mestre.

Para além destes, Carlos Nogueira identifica outros: “Há ainda o Birth/Rebirth, que gira à volta da morte de uma criança - lá está, do luto -, sendo um filme supostamente de terror; o Land Ho!, que é ultradivertido, mas é também a história de dois ex-cunhados que se juntam para fazer uma espécie de luto dos respetivos casamentos; o documentário Bloody Nose, Empty Pockets, que fala do luto em relação a um bar... Enfim, essa observação é de facto interessante, porque, se formos a ver, o luto faz parte da própria ideia de família. Isto é, a relação familiar envolve o luto necessariamente, seja o luto literal, da morte de um parente, sejam outras manifestações dele, como o crescimento - o chamado 'matar os pais'. Não tinha pensado nisso, mas é verdade.”

No seu terceiro ano, o ciclo que traz ao São Jorge uma sólida dúzia de títulos, permitindo ao espectador ver todos os filmes, se assim o desejar - “porque não há sessões sobrepostas, ao contrário das situações gigantescas dos festivais com 300 filmes”, como refere o programador -, já consegue ir dando ao público uma experiência de continuidade. Quer dizer, há nomes que vêm das edições anteriores (Aaron Katz, correalizador de Land Ho!, Bill Ross IV e Turner Ross, a dupla por trás de Bloody Nose, Empty Pockets, e Patrick Wang), ajudando a cimentar uma, vá lá, familiaridade com o cinema independente americano.

Patrick Wang, uma descoberta fascinante

Foi no primeiro Outsiders que tivemos, precisamente, o primeiro contacto com o trabalho de Patrick Wang, através do belíssimo In the Family, sem dúvida um filme que lançava a curiosidade sobre este realizador americano descendente de taiwaneses. Pois bem, ele é o convidado deste ano, marcando presença em Lisboa para uma masterclass na Faculdade de Belas-Artes, e para apresentar outros dois filmes, que por certo confirmam o feitiço lançado por In the Family.

“O Patrick Wang é uma personalidade especial. E só tenho pena que seja um cineasta tão bissexto: só tem três filmes até hoje. Portanto, com a exibição agora de The Grief of Others e A Bread Factory, vimos a obra completa dele, no contexto do ciclo”, resume Carlos Nogueira, sem deixar de salientar que falamos de alguém multifacetado, que vem de uma formação técnica, relacionada com Economia, sendo também encenador, escritor e tradutor de poesia russa.

Tudo isto a bater certo com o realizador que causa fascínio pelos seus “planos clássicos, não espalhafatosos, de um cuidado de mise-en-scène admirável”. Uma arte a ser testemunhada intensamente, desde logo, no seu filme de maior fôlego, A Bread Factory, dividido em duas partes, que o programador enaltece. “As duas metades, embora sejam a continuação uma da outra, têm abordagens diferentes: há mais realismo na primeira metade e uma forma mais fantasista na segunda. É um filme que aprecio imenso, e era muito bom que o público não se ‘assustasse’ com a duração de quatro horas.”

Entre outros filmes, que se espera conseguirem “navegar sozinhos” por terem questões bem definidas no papel - como The Surrogate, com uma narrativa sobre a gestação de substituição, ou Pier Kids, documentário que sonda os laços de uma comunidade de jovens LGBT negros -, Carlos Nogueira chama a atenção para o que pode passar despercebido.
“Destacaria o South Mountain [de Hilary Brougher], que me parece um daqueles filmes raros, adultos, com uma feição crowd-pleaser, que não vira as costas ao público, e com uma atriz que vem das séries, Talia Balsam. E no último dia [5 de maio] temos dois títulos que saltam igualmente à vista: o já referido Bloody Nose, Empty Pockets, dos irmãos Ross, de quem gostava de continuar a apresentar filmes neste ciclo, porque são muito bons; e o filme de encerramento, A Thousand and One [de A.V. Rockwell], que é a grande saga neste panorama. É uma obra de Nova Iorque, a fazer pensar em Spike Lee e nos primeiros Scorsese, em que a cidade está muito presente, cobrindo-se um período temporal bastante largo - são cerca de 10 anos na vida de uma família que luta contra aquilo que parece ser o destino. É um grande filme.”

E por falar em largo período de tempo, vale a pena pôr também os olhos em The Cathedral, de Ricky D’Ambrose, um artesanato de emoções arrefecidas, que traçam a história de uma família americana ao longo de duas décadas, entrelaçando o íntimo e o coletivo numa distinta linguagem formal. Expressão de cinema e família, é tudo o que se quer neste Outsiders.

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