Os fantasmas que nos acompanham

Candidato de Portugal aos Óscares 2023, Alma Viva é a estreia destemida de Cristèle Alves Meira na longa-metragem. Um filme transmontano com sangue na guelra, amor fraterno, bruxaria e mulheres livres.

É luso-francesa, tem Trás-os-Montes no ADN e procura, através do cinema, o assombro da realidade. Cristèle Alves Meira já tinha dito ao que vinha com as curtas-metragens Sol Branco (2015), Campo de Víboras (2016) e Invisível Herói (2019), mas é Alma Viva que dilata e concentra um imaginário transcendente, aqui em relação direta com uma ideia de independência feminina. Sobre isso, a realizadora disse-nos, numa entrevista publicada esta semana no DN, que assumir plenamente o tema da bruxaria foi uma forma de contemplar "aquelas mulheres que ainda hoje são marginalizadas" por "não corresponderem ao destino que a sociedade lhes determinou". Numa palavra: independentes.

Em todo o caso, esclareça-se desde já que Alma Viva não é um panfleto feminista, e muito menos um filme circunscrito a um tema que torna a sua comunicação mais atrativa e colorida. Bem pelo contrário. O que fascina nesta primeira longa-metragem é a sua ousadia de fazer da matéria do fantástico um lugar de encontro real entre a mágoa adulta e a solidão mágica da infância. Essa de que se reveste a protagonista, Salomé (admirável interpretação de Lua Michel, filha da realizadora), uma menina francesa de regresso à aldeia natal da mãe, em Trás-os-Montes, onde passa os verões, para desta vez se confrontar com a morte da sua estimada avó. Tal evento marcante corta o filme ao meio, deixando para trás um início assente na curiosidade da criança - que espreita os rituais mediúnicos da avó e se sente confortável nessa linguagem esotérica -, e passando a observar o desgoverno da família que discute diante do corpo da matriarca defunta. Isto enquanto Salomé, à noite, possuída pelo espírito da avó, tenta ajustar contas com a "bruxa má" que se acredita ter causado a morte da sua rival...

Esta intriga de aldeia é parte do que torna Alma Viva um filme tão genuíno, revelando o ambiente conflituoso dos meios fechados, onde a vida dos outros é assunto sem dono. De resto, falamos de um cenário humano delicado e rude, bem conhecido da realizadora, que o conseguiu extrair de uma combinação de atores profissionais (entre eles, Ana Padrão e Jacqueline Corado) e não-profissionais. Homens e mulheres que usam do vernáculo tanto para exprimir o amor, como para fazer explodir a angústia. O vigor das cenas de família, com um quê de autobiográfico, estabelecem então um jogo de equilíbrio de tom com o mundo místico de Salomé, cuja herança espiritual da avó acaba por se revelar demasiado pesada.

Com fotografia de Rui Poças, que sabiamente modela os corpos maciços no calor da sua luz terrena (destaque-se um plano pictórico da avó, no quarto, a ser lavada pela filha), Alma Viva também não deve nada a uma certa escola de retratos da emigração portuguesa, mais ou menos simpáticos e generalistas. A sua densidade específica vem de um olhar atento à íntima tragédia humana, com as suas nuances de comédia, que nunca subtraem a beleza deste ato de existir em estado bruto, aberto ao diálogo com os mortos. Qualquer falta de tato poderia traduzir-se num outro filme, mas Cristèle Alves Meira tem arte para libertar os fantasmas.

dnot@dn.pt

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