Os dois corpos de Erica Fontes
Ilustração Vítor Higgs / DN

Os dois corpos de Erica Fontes

Publicado a
Atualizado a

Em 1957, no conhecido ensaio The King’s Two Bodies. A study in mediaeval political theology (Princeton, Princeton University Press), o historiador germano-americano Ernst Kantorowicz escrutinou, nas suas diversas manifestações, a doutrina medieval dos dois corpos do rei, nos termos da qual, e como é sabido, os monarcas têm um corpo físico, sujeito aos acidentes da natureza e às contingências da fortuna, e um corpo político, intangível e eterno, alheio às vicissitudes da vida temporal e terrena. 

Em 2013, no também conhecido ensaio De Corpo e Alma. Dos filmes à vida real. As confissões da estrela de filmes para adultos que conquistou o mundo (Alfragide, Edições Asa), a actriz pornográfica portuguesa Erica Fontes avançou uma proposta de releitura da doutrina medieval dos dois corpos do rei - neste caso, da rainha - à luz da seguinte tese, exposta logo na frase de abertura da obra, rasgando a primeira linha: “Se o sexo fosse como nos filmes, eu nunca teria um orgasmo.” 

Dessa forma - e não estamos gozando, ou sequer ironizando -, Fontes visou instaurar uma divisão clara, teórica e prática, entre o seu corpo público e político, mostrado nos filmes, e um outro corpo seu, ou corpo-outro, este privado e íntimo, o dos orgasmos.     

A revelação, feita por uma das maiores profissionais do género, de que as actrizes pornográficas não atingem o clímax na tela, além de confirmar o que de há muito suspeitávamos, constitui uma demonstração - e uma denúncia - da profunda inautenticidade da cinematografia pornográfica ou, no mínimo, daquela em que Erica participou e, cremos, ainda participa activa e passivamente, da qual se podem destacar, inter allia, muito allia: O Diário Sexual de Maria, a sua obra-prima, de 2009; a comédia Bimbi, A Máquina do Sexo, o primeiro filme porno em 3D do mundo (ou deste mundo em 3D?); Sofá Vermelho 1 e Sofá Vermelho 3 (pelos vistos, não participou no segundo tomo de Sofá Vermelho); Erica na Mansão das Orgias ou, enfim, Tavares, o Arquitecto Quebra-Bilhas, homenagem à clef a uma lenda vida do VHS, todos produzidos pela empresa Hot Gold, da qual, como é sabido, a actriz se desvinculou na época de 2010 (tal como, de resto, é descrito au complet, e com cópia de pormenores escabrosos, na sua autobiografia política, ob. cit., pp. 96-97, p. 105).

Além de desvendar a inautenticidade estrutural da pornografia fílmica, a tese “se o sexo fosse como nos filmes, eu nunca teria um orgasmo” (ou “se estamos a falar de prazer, as coisas que se fazem nos filmes não são para importar”, p. 23) acaba, surpreendentemente, por aproximar o porno dos demais géneros cinematográficos, já que, também nestes, todos os gestos, emoções e falas são simulados ou, melhor dizendo, representados. Crê-se que foi justamente essa iniludível proximidade entre o porno e o não-porno, essa contiguidade e fluidez de géneros, que levou Nuno Markl a designar Erica por “a Meryl Streep dos filmes marotos”, no programa “5 para a Meia-Noite”, emissão de 6/2/2013, qualificativo em nosso entender muito mais apropriado do que o de “Messi da pornografia”, proposto por Fernando Alvim no “É a Vida Alvim!”, de 25/1/2013.

A confissão de Erica sobre a ausência de orgasmo em palco introduz, por outro lado, um interessante ponto de debate sobre o campo pornográfico, tradicionalmente entendido como um território capturado pelo patriarcado hegemónico e por lógicas masculinas de dominação. Ora, a citada afirmação da autora (Fontes, 2013: 5), permite inferir que as actrizes pornográficas têm a possibilidade - e o privilégio - de simular o clímax na tela, enquanto os seus partenaires masculinos, em contraste, são obrigados a garantir, como serviço mínimo, contratualmente imposto, erecções de pedra e ejaculações frondosas. É disso que a autora dá conta na página 161, quando, a propósito das dificuldades de desempenho do actor Choco Ice, escreve o seguinte: “em 2013, os meus receios confirmaram-se. É preciso que o homem tenha uma enorme resistência física para conseguir manter a posição, quando está por trás da mulher na cama.” É possível, pois, que por esta via se alcance um relativo reequilíbrio de papéis de género num contexto que, até hoje, julgávamos ser radicalmente misógino ou não-paritário, quando não bastante alarve. 

Note-se, em todo o caso, que a afirmação implícita, mas clara, da inautenticidade do porno acaba por estender-se inexoravelmente aos próprios protagonistas dos chamados “filmes para adultos”, um eufemismo incompreensível, mas persistente. De facto, Erica, em si mesma, não existe, esgota-se na sua qualidade de “ícone”, ignorando-se sequer o nome com que foi baptizada e até o apelido do registo. Através da sua página pessoal na Internet e da sua narrativa memorialística, sabemos tão-só que nasceu em Lisboa, em 14 de Maio de 1991, sendo por isso do Touro. Tem 1,70m, pesa 50kg, olhos castanhos e cabelos loiros, e, quanto a idiomas, versa o português, nas variantes europeia e tropical, o inglês e o espanhol, melhor dito o castelhano. O apelido Fontes não é sequer de família, foi escolhido por ela e pelo companheiro Ângelo quando, a caminho da primeira rodagem maroto (gravada numa clínica dentária em Benfica), passaram por um fontanário na Praça da Alegria. Erica é também nome putativo ou artístico, do mesmo modo que Ângelo, namorado da actriz e antigo defesa-esquerdo na 1.ª Divisão da Liga e, depois, nos distritais de Setúbal, cujo apelido Ferro foi escolhido a partir de uma lista com declinações semânticas da palavra “pénis”, que nos abstemos de descrever (mas que, para quem quiser, estão na bio da moça, p. 7). 

Em 2013, com apenas 21 anos, Erica Fontes tornou-se a primeira e cremos que única portuguesa a conquistar um prémio XBIZ, o Óscar da pornografia, na categoria “Foreign Female Performer of the Year”. Modesta, diria a Nuno Markl que foi uma “questão de sorte”, acrescentando, todavia, “e de trabalho”, expressão que levará os moralistas ao rubro, e os maldosos ao gozo, mas que tem muita razão de ser: caso não saibam, a actividade laboral dos actores e das actrizes porno é extremamente exigente do ponto de vista físico e emocional. 

A este propósito, há, aliás, uma outra frase perturbante no livro de Erica, dita logo no início da obra: “ainda hoje sinto sempre um alívio quando a cena termina” (p. 12). Poderá tratar-se de um lapso de língua da autora, de um involuntário deslize de honestidade, mas o facto é que aquela afirmação talvez levante a ponta do véu de uma realidade porventura mais negra, bem distinta da visão glamorosa que Fontes pretende transmitir sobre a sua vida de estrela porno internacional. No limite, e mesmo que não concordemos com as motivações e conclusões desse relatório, o alívio sentido por Erica no final de cada cena acaba por corroborar, ao menos em parte, os arrepiantes trechos que o famoso e gigantesco Meese Report, com mais de 1.960 páginas, dedicou à caracterização dos performers de conteúdos sexuais explícitos: origens familiares desestruturadas, consumo de drogas, exploração no plateau e fora dele, etc. (cf. Attorney General’s Comission on Pornography - Final Report, Julho de 1986, em esp. pp. 837ss).  

O Relatório Meese, como é sabido, foi muito criticado logo na altura em que surgiu - 1986 -, devido ao seu carácter pouco científico e sistemático e, segundo disseram, por ser politicamente orientado para servir os propósitos neoconservadores da administração Reagan. É provável que muito do que nele se diz esteja ultrapassado e desactualizado, desde logo pela ocorrência de fenómenos como a SIDA, que obrigaram à adopção de apertadas medidas de controlo por parte “da indústria” (ainda assim, nos filmes portugueses não se usam preservativos, apenas testes periódicos, método que os médicos não consideram seguro: cf. Expresso, de 7/11/2010; foi esta, ao cabo e ao resto, a grande razão da ruptura entre Fontes e a Hot Gold) e sobretudo pelo ascenso da Internet, que revolucionou por completo o negócio do sexo, hoje exponenciado ao limite: só nos Estados Unidos, a pornografia online movimenta actualmente entre 9 a 97 mil milhões de dólares ao ano (repete-se: mil milhões), apontando as estimativas mais conservadoras e credíveis para 15 mil milhões de dólares/ano. São dados de 2018, anteriores ao confinamento imposto pela Covid (que fez explodir aqueles números), e que permitem concluir que o porno tem um volume de negócio muito superior ao da Netflix, do cinema de Hollywood ou da indústria dos espectáculos musicais ao vivo. Em 2019, o site Pornhub teve 115 milhões de visitas por dia, 42 mil milhões ao ano, e um estudo de 2021 concluiu que, nos países desenvolvidos, entre 46 e 74% dos homens e 16 e 41% das mulheres são consumidores habituais de pornografia. 

Curiosamente, a narrativa biográfica de Erica Fontes surge e afirma-se como um “contra-Relatório Meese” e é uma tentativa militante, quase panfletária, de normalização da pornografia profissionalizada e industrial. Ao contrário dos relatos de jovens caídas na prostituição e na miséria (como o mítico Christiane F., adaptação em livro de uma reportagem da Stern, por cá editado pelo Círculo com o título Os Filhos da Droga, em 1981, ou, também pelo Círculo, Crónica da Mais Velha Profissão do Mundo, de Jeanne Cordelier, 1977), a obra de Erica é radiosa, luminosa, panglossiana, de uma transparência cristalina: a actriz diz-nos como conheceu o namorado (através do Hi5, morando ambos na mesma zona da Margem Sul), descreve ao pormenor a primeira noite de sexo que tiveram (no apartamento de Ângelo, depois dela beber uma Coca-Cola com gelo e enquanto viam uma cópia pirata do filme de terror Saw 6) e, entre o mais, refere que já não era virgem na altura (“só muitos meses mais tarde é que o Ângelo me disse ter ficado aliviado por não ter sido ele a tirar-me a virgindade”, procedimento que ele considerava “muito esquisito” de realizar) e que perdeu a dita por volta dos 16 anos, já depois de ter feito a primeira tatuagem, facto que, conta ela, deixou extasiado um produtor porno de Budapeste, Hungria, país que, como se sabe, segue o modelo magiar perda de virgindade + primeira tatuagem (sequência húngara), e não o paradigma inverso, mais mediterrânico, de primeira tatuagem + perda de virgindade. 

Foi também uma tatuagem - de um dragão, na omoplata esquerda - que encantou Erica nas fotografias que Ângelo difundiu na rede social Hi5. Combinaram tomar um café perto da escola dela, que tinha então 15 anos (e ele 22), Erica achou-o “bonitinho” e gostou da maneira de falar do rapaz, mas só se reencontraram um ano depois, após Erica ter terminado o namoro com um outro homem, do qual pouco se sabe, apenas que era também mais velho do que ela. O motivo para tal hiato - cerca de um ano, sublinhe-se - deveu-se às actividades de um e do outro, ela com aulas no Cambridge à noite, ele com os treinos do futebol. Por coincidência ou fervor romântico, voltariam a ver-se exactamente no mesmo café onde tinham estado na jornada anterior e, no dia seguinte ao reencontro, Ângelo levou-a até ao Parque da Paz, onde atiraram seixos à água num lago artificial, e ela lamentou não haver cisnes para alimentar (“Deve ser proibido dar-lhes comida” - observou Ferro; “Porquê? Eles explodem?”, obtemperou Fontes na página 27). Depois, como ela já estava farta de andar, “apesar dos ténis”, sentaram-se “numa estrutura de pedra semelhante a duas portas com umas colunas romanas” e aí estiveram longe do mundo, num universo só seu, falando horas a fio, e a saber: (1) das zonas secas da vegetação; (2) do calor que tinha feito esse ano; (3) dos prédios que se viam à distância; (4) de viver na Margem Sul. 

Tempos depois de dissecarem estas problemáticas, às páginas 27-28, e em data não especificada, mas sendo uma sexta-feira, Ângela convidou-a para verem juntos um filme de terror no seu apartamento, cuja sala fazia um L, com um sofá a seguir à curva, e tinha um LCD sobre um aparador preto, baixo, de madeira, ligado a um portátil que, por sua vez, estava sintonizado na Sport TV. E já que estamos em maré de siglas e iniciais, acrescente-se que Erica lhe admirou as costas em V, mas, sobretudo, as aptidões demonstradas no domínio das novas tecnologias: “admirei-lhe as costas em V, mas ainda mais a capacidade de ligar aqueles fios todos, de carregar em três ou quatro botões do comando e fazer aparecer, como que por magia, a imagem do ecrã do computador na televisão” (op. cit., p. 29). “É para isto que os homens servem!”, exclamou ele ante o olhar extasiado de Erica, a qual, estando aparelhada de umas sandálias pretas sem salto, de um top branco e das “calças de ganga que mais me favoreciam o rabo”, certamente terá pensado nesse instante que, assim como assim, os homens também serviam para outras coisas, como logo a seguir se mostrou, ainda que, como é próprio das novelas de mistério, o leitor seja deixado em suspenso sobre certas questões-chave do então ocorrido, como esta, jamais esclarecida: “o que quer que estivesse dentro dos boxers, mexeu-se” (p. 32). Ora, como as galinhas à solta e os porcos assados enfiados em espetos só aparecem muito mais à frente na narrativa, quando a autora fala dos festivais eróticos medievais em que participou, e como a alusão a Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira também só surge mais adiante, na página 58, aquando da primeira aparição televisiva da actriz (no “Você na TV”, por ocasião do Salão Erótico de Lisboa, na FIL, 2009), e como, enfim, o buldogue francês Hulk apenas irrompe na trama no Capítulo 5, importado da Eslováquia e comprado porque o Ângelo passava o tempo fora de casa a jogar à bola ou a trabalhar no aeroporto, nunca saberemos ao certo, mesmo lido o livro de fio a pavio, que apavorante monstro ou animal bizarro terá sido aquele que se movimentou no interior das cuecas do rapaz, sitas num apartamento em L da margem sul do rio Tejo, e com um sofá na curva (sofá e curva em que, convém dizê-lo, se processou todo este drama e enigma). 

A propósito de sofás, saliente-se que De Corpo e Alma pode ser lido e interpretado integralmente numa perspectiva IKEA, toda centrada no mobiliário e na decoração de interiores, tantas e tão abundantes são as referências feitas no livro a essas realidades domésticas: logo na primeira filmagem, a tal do dentista em Benfica, e além de um cadeirão de ortodontia e da maquilhadora Natacha, aparecem quatro sofás bege na sala de entrada e, lá dentro, um sofá branco de quatro lugares, onde a narradora, para fazer jus ao número, opta por ficar de quatro, empinando o rabo, como as doninhas (também aí, e uma vez mais, suscita-se a recorrente questão do underwear angelical: “eu conseguia ver, pela falta de enchumaço sob os boxers pretos, que ele estava a aproveitar para descansar”, p. 11). Já então, a questão dos sofás de napa, ou da napa dos sofás, e da sua humidade: “os nossos corpos suavam, por causa da napa dos sofás, e por causa do suor a napa estava cada vez mais escorregadia e húmida” (p. 12). Não muito depois, nas filmagens de Bimby, a Máquina do Sexo (que só estreou em 2012, e apenas em 2D, com o título Cuzinho… com a Máquina do Sexo), diz Erica que “os sofás eram confortáveis, mas tinham um contra: não permitiam fazer muita coisa” (p. 32), o que talvez se explique pelo facto de, julgamos nós, os mesmos terem sido concebidos primacialmente para que as pessoas neles se possam sentar, na melhor das hipóteses reclinar, enquanto absorvem Malato ou o general Agostinho. Em Budapeste, Capítulo 12, uma cena lésbica num sofá de napa creme, em parceria com Alma Blue e as duas “a gemer ao despique”, Erica talvez ao saudoso fado, Alma no tradicional kodály (sobre a questão do gemer, cf. ainda, e logo no primeiro filme: “o Óscar [Rosmano] estava sempre a dizer-me para gemer, mas eu nunca fui de fazer muito barulho”). A napa, o eterno problema da napa, voltaria a emergir na Hungria, desta feita num sofá vermelho (de napa), acompanhado de um puff redondo, antecedendo aquilo que é descrito como “uma cena lésbica romana”, na qual Erica e Cathy usaram, além de uns panos brancos atados à cinta, coroas de louros douradas, compradas pela primeira numa loja online. A questão da napa tornaria a atacar num festival erótico medieval, no qual Erica Fontes, no calor da coisa, arrancou a tanga castanha do namorado (que estava vestido com uma batina de monge branca), mas os velcros não resistiram e, confessa, “fiquei com um pedaço de napa na mão” (antes isso, antes isso, permitam-nos o arrepiado aparte). O pior, contudo, estava para vir e, de novo, esteve relacionado com problemas de assento e de encosto. Caída a noite, “escureceu e ficou um frio horrível” e, com Erica e Ângelo em palco, rodeados de fardos de palha, cuspidores de fogo e de porcos a assar no espeto, ocorreria então o drama do orvalho dos Carvalhos (a localidade onde decorria o festival medievo): colocado sobre um estrado de madeira com um metro de largura, o colchão de esponja  amarela, com 12 centímetros de altura (note-se a precisão milimétrica com que Erica recorda estas coisas), ficou ensopado pelo sereno e, na descrição da autora, “a partir das 22h, sempre que o Ângelo me deitava de costas, para entrar dentro de mim, ou se deitava ele, para eu me sentar nele, a esponja molhada arrepiava-nos os corpos despidos. E quando ele começava o movimento de vaivém, no meio das minhas coxas, ou eu começava a subir e a descer em cima dele, a esponja rangia como uma mulher lubrificada. E não era o meu caso” (p. 39). É disto que se fazem os grandes prosadores: por um lado, a subtil metáfora entre a esponja amarela (lubrificada) e o corpo da autora (não lubrificado); por outro, uma extraordinária capacidade de transmissão de sensações visuais e recriação de ambientes - mesmo sem termos pagado bilhete, é como se estivéssemos lá, naquela noite aos Carvalhos, vendo dois corpos na esponja, com esta a ranger de frio. 

É importante dizê-lo: no decurso de uma carreira que, sendo já longa, não cessa de surpreender, Erica Fontes fez uma incursão fugaz pelo garagismo porco (As Meninas da Garagem, 2010, gravado numa oficina do Estoril), mas, que se saiba, nunca participou em filmes de canalizador. Conhece-se a data precisa em que se estreou no porno - 6 de Junho de 2009 -, 23 dias depois de perfazer 18 anos. Tinha acabado o 12.º ano com boas notas, morava com Ângelo há menos de um ano, pensava inscrever-se num curso de Estética, e, num fim-de-semana na Costa, enquanto contemplavam o mar e bebiam Coca-Cola num café, viram o anúncio num jornal: “Se tens entre 18 e 30 anos, orgulho no teu corpo, és livre de preconceitos e procuras um rendimento acima da média, preenche o seguinte formulário de inscrição.” Muito provavelmente, esse jornal era o Correio da Manhã, o mesmo que, tempo depois, não muito, noticiaria na primeira página “Erica Fontes vai fazer sexo anal”, um título boçal e inverídico, deturpador das palavras da actriz numa conferência de imprensa realizada em Novembro de 2009, por ocasião do Salão Erótico de Lisboa, e pelo qual o jornal lhe pediria desculpas, com o mal já feito. Pela mesma altura, nova desilusão: quando anunciou que entrara no porno, muitos amigos viraram-lhe as costas, mas, mal a viram na TV, falando do Salão Erótico, ligaram a pedir bilhetes (“fiquei bastante triste”, diz a actriz, p. 34). O Correio da Manhã voltaria a reincidir na inverdade, noticiando, e novamente na primeira página, “Erica Fontes faz sexo oral por 20 euros”, uma interpretação abusiva das aulas sobre essa matéria que a actriz leccionou na Academia de Vénus, episódio que a levou a não dar mais entrevistas àquele jornal. Não sabemos como terá reagido a duas barbaridades mais recentes: em 2016, um restaurante do Porto com um nome idiota, o Tascö, bostou no Facebook a fotografia de um naco de carne, com a legenda: “Podia perfeitamente ser um pedaço da Erica Fontes… Mas é de uma outra vaca”. Ante a indignação geral, até do Esquerda.Net, pediram desculpas à actriz e tiraram a alarvidade, de resto bem sintomática; em 2019, um actor que contracenara com Erica, de nome Fábio Araújo, quis dar uma lição ao antigo namorado da sua companheira, mas, por trágico engano, acabou desferindo uma facada mortal num amigo deste, que teve, na hora fatal, o infortúnio de ser o primeiro a sair pelo portão de uma moradia na Areosa, Viana do Castelo (cf. Correio da Manhã, de 7/1/2019). 

Erica Fontes desenvolveu toda a sua fulgurante carreira já no século XXI e, muito possivelmente, a estranheza com que muitos encaram o que faz deve-se não tanto a razões morais quanto a diferenças geracionais abissais, que bem ficam patentes num périplo gastronómico pelo seu livro, onde ficamos a saber o que Erica come e que a sua dieta é feita à base de Nestum mel com leite, lasanhas, pizzas, massa carbonara, cheeseburguers natura do McDonald’s, Coca-Colas, Skittles, gomas, um Baileys num bar do norte (“bebida para meninas”) e, num restaurante português da baixa de Los Angeles, um bife com batatas a murro (Ângelo comeu frango com arroz e legumes e, a conselho de um colega de ofício, passou a ingerir regularmente sumos naturais para dulcificar o sémen e frutos secos para ganhar resistência). 

Nascida em 1991, e mesmo tendo começado a ver hard-core e a frequentar sex-shops ainda nova, Erica nada tem que ver com a pornografia das décadas anteriores, que teve por emblema e ícone a revista Gina - Histórias Sexy Internacionais, cognominada “a Anita dos crescidos”, um tempo em que não existiam sex-shops (a primeira, “Contra-Natura”, só abriria em 1991), em que exposições como a Pornex, de 1984, causavam imensa celeuma, o mesmo sucedendo com a transmissão, pela RTP, em Setembro de 1983, da comédia Pato com Laranja e, mais tarde, em 1991, de O Império dos Sentidos.

Este foi o mundo de ontem de Erica Fontes, tão distante e longínquo que, na sua autobiografia, ela confessa que não sabia sequer quem era Tomás Taveira até ao dia em que desafiaram a participar em Tavares, o Arquitecto Quebra-Bilhas. Erica cresceu e medrou na margem sul do rio Tejo, num tempo em que as periferias suburbanas de Lisboa e Porto começavam a perder o estatuto de satélites-dormitórios para conquistarem uma identidade própria, convertendo-se em territórios autónomos de residência, trabalho e diversão e lazer, dotados de uma população jovem numerosa e heterogénea, mas orgulhosa das suas origens, um fenómeno sociológico que permanece largamente por estudar. O tempo de Erica é também o da explosão e o da banalização do sexo na esfera pública, acompanhando o declínio da presença da Igreja nessa esfera, de que o fracasso do projecto da “TV da Igreja” foi só um entre outros exemplos. O tempo de Erica Fontes coincide ainda, e não por acaso, com uma época em que as feministas, na sua maioria, entregaram os pontos da luta contra a “objectificação do corpo” (Carole Pateman, Andrea Dworkin) e passaram a aceitar a pornografia, e até a promovê-la, em nome da liberdade de expressão e de um “direito ao corpo” supostamente mais pleno.    

Mas sobretudo, acima de tudo, Erica Fontes é contemporânea da internacionalização da sociedade portuguesa, fruto da Internet e não só, e o que há a dizer sobre ela é o seguinte: num meio onde a concorrência é feroz e sem tréguas (só nos EUA, mais de 30 mil actores, entre profissionais e amadores), Erica geriu a sua carreira de uma forma absolutamente brilhante, em círculos concêntricos e em ascensão constante, dando passos cada vez mais ousados, mas nunca perdendo o controlo e o senhorio de si mesma:  depois de Portugal, tacteou Espanha, andou pela Suíça, a seguir Budapeste, a Meca europeia da indústria pornográfica, e logo depois a América, directa ao coração das trevas, o porn valley de Los Angeles. O caminho que trilhou e, sobretudo, a inteligência com que o fez, num percurso onde contou com um trunfo raro e de peso, a sua relação estável com Ângelo Ferro (“o meu deus grego”), levam-nos a concluir que, como empresária de si mesma, Erica Fontes dá lições e cartas a 90% do empresariado nacional, que vive atascado na langue de bois do “empreendedorismo” e sempre aconchegado ao Estado, ao contrário dela, que, usando outras línguas e outros aconchegos, chegou ao topo do mundo no seu métier

Em 2013, encabeçou o top de celebridades mais procuradas na versão portuguesa do Google, destronando CR-7, Kim Kardashian, Angelina Jolie e outras feras. Se descontarmos Cristiano e António Guterres, Erica Fontes é actualmente, e sem qualquer dúvida, a personalidade portuguesa mais conhecida em todo o mundo, deixando a léguas de distância todos os políticos lusos, futebolistas, homens de letras. 

Hoje com 32 anos, é possível que se retire em breve, até porque tem um ofício de desgaste rápido e a vida, como a de nós todos, de resto, lhe vai escapando como a areia na palma das mãos, slipping through her fingers, diriam os ABBA. “Se ao menos conseguisse parar o tempo, para não termos de crescer e de ser profissionais”, desabafa ela na sua autobiografia, onde afirma ter intenções de parar quando fizer 35 anos.  

O inquestionável sucesso que teve com o seu corpo político - e, crê-se, também com o privado, só conhecido de Ângelo - não se estende, porém, a outro dos seus desideratos, o da normalização da profissão que escolheu. Por muito que  a pornografia nos seja apresentada como a coisa mais natural do mundo, e por muito que tenhamos avançado na dita “abertura das mentalidades”, o facto é que, ao dia de hoje, ela continua a não ser uma actividade igual às outras, como fica patente, por exemplo, no facto de os pais de Erica nem quererem saber bem o que a filha faz quando está no estrangeiro, no nervosismo atrapalhado de Nuno Markl quando a entrevistou, ou no segredo absoluto com que ela, e muito bem, defende à outrance a sua vida pessoal e privada, usando uma identidade dupla que, confessa, por vezes a baralha e confunde. Tudo isto, e muito mais, é a prova provada de que a pornografia está longe de ser “normal” e que, no dia em que o for, tornar-se-á ainda mais triste e vazia do que já é hoje; no limite, deixará de existir. 

Por estranho que pareça, ou talvez porque ela seja um eikon mundial, dei em mim a pensar na semelhança entre a tradição pictórica dos ícones e a pornografia contemporânea. Nos ícones ortodoxos, usa-se a “perspectiva invertida”, em que o ponto de fuga não está no interior da tela, mas no coração do espectador, e em que, no fundo, não é este que contempla o ícone, mas o ícone que o observa a ele. Passa-se o mesmo na pornografia: quando a vemos naqueles preparos, ataviada de botas ou até nem isso, Erica pergunta-nos, muito gaiata, quem somos nós, e de onde viemos - e com que direito ali a sujamos. 

*Prova de vida (40) faz parte de uma série de perfis 
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.


Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt