O sonho elétrico de Coppola
O dia é 4 de Julho, Dia da Independência dos Estados Unidos. Ou o dia em que Frannie e Hank celebram o quinto aniversário da sua relação. Deveriam, pelo menos. Ela, funcionária de uma agência de viagens, quer ir de férias para Bora Bora, ele, mecânico, acha que a escritura da casa em obras onde estão a viver é o melhor presente. Entre levantar voo e reencontrar o teto do amor, os dois corpos, os dois comuns mortais que nos são apresentados (nas interpretações de Teri Garr e Frederic Forrest, atores também sem peso de estrelas), separam-se numa Las Vegas de estúdio, desviados por outras promessas de “par ideal”, que os resgatam da tristeza em dia de festa...
Argumento simples, não é? Francis Ford Coppola pegou nele e deu azo à sua megalomania experimental, não contando com a receção fria que teve. Mais de quatro décadas depois, e no próprio dia 4 de julho, Do Fundo do Coração (1982) regressa ao grande ecrã numa versão a que o realizador chamou de Reprise, convidando-nos a saborear melhor a vertigem das luzes de néon, antes da estreia de Megalopolis, assegurada pela Midas Filmes - a mesma distribuidora desta fabulosa cópia digital 4K de One From the Heart.
Primeiro grande acontecimento cinéfilo do verão, a redescoberta de uma das peças fundamentais da carreira mitológica de Coppola acaba por sugerir uma ocasião solene. Estamos perante uma obra-prima rejeitada ao seu tempo e que chega aos nossos dias com uma forte impressão de feitiço. Um abundante feitiço terno. Uma espécie de postal vivo que faz pulsar o Sonho Americano através da magia mais terrena: a dos amantes feitos em cacos, suscetíveis à cola musical de Tom Waits e Crystal Gayle, que lhes restitui o vaso amoroso ao longo de uma noite boa conselheira. O que representam Raul Julia e Nastassja Kinski, substitutos momentâneos dos respetivos pares, senão sinuosos conselhos noturnos?
O leitor estará naturalmente curioso sobre as alterações que justificam o subtítulo Reprise. Mas sem entrar em pormenores (que fazem parte do ajuste cirúrgico da experiência), a verdade é que, mantendo intacto o espírito de Do Fundo do Coração, a nova versão de Coppola passa sobretudo por um ligeiro gesto regenerador da dinâmica das primeiras cenas. De resto, a vitalidade radiosa do espetáculo e o murmúrio do melodrama que garante a fluidez das emoções continuam a ficar connosco, entre belíssimos planos-sequência, reflexos nos vidros, desenhos de néon e paredes falsas. Como uma sensação, ou um vapor prolongado na memória sensorial.
Filme-laboratório
Realizado na sequência do projeto louco Apocalypse Now (1979), Do Fundo do Coração está para a obra de Francis Ford Coppola como New York, New York (1977) está para a de Martin Scorsese, ambos desejos de musical fora da sua época, a suceder aos grandes trabalhos de assinatura dos autores (no caso de Scorsese, Taxi Driver).
E se é certo que Coppola se entusiasmou com a perspetiva de um novo projeto que lhe permitiria explorar a eletricidade dos seus sonhos de cinema, também parece ter guardado do falhanço uma recordação doce, ou um conto moral não totalmente consumido pelo amargo da incompreensão alheia.
No livro O Cinema ao Vivo e as Suas Técnicas, de 2017, publicado entre nós pelas Edições 70 (tradução de Luís Lima e Alexandra João Martins), Coppola expõe pormenorizadamente o contexto em que nasceu a ideia de fazer One From the Heart. Na cabeça do realizador, uma comédia musical, género em desuso, que iria responder a um gosto popular e prevenir a hecatombe financeira que se presumia em relação ao anterior Apocalypse Now. Mas, mais do que isso, aqui estava a oportunidade das suas revolucionárias conceções tecnológicas.
Assim, One From the Heart começou por ser um filme-laboratório: “Os cenários estavam dispostos segundo a ordem de progressão das cenas, logo, os atores podiam passar de cena para cena, desempenhando o argumento ao vivo, com os sons a serem tocados ao vivo, com montagem final, efeitos especiais e efeitos sonoros a serem adicionados também ao vivo. Ou, pelo menos, julgava eu.”
Claro, a realidade impôs-se: “O que se seguiu foi um bom exemplo de que, quando um grupo de pessoas está a ouvir uma ideia nova, cada uma delas ouve algo diferente. Vittorio Storaro - para mim, sem dúvida, um dos maiores diretores de fotografia (...) - veio ter comigo e disse, com a sua encantadora pronúncia italiana: ‘Francis, porque temos de filmar com tantas câmaras? É tão difícil para mim iluminar. Se usássemos uma só câmara, podia ser muito mais rápido.’ Foi então que tomei a decisão: o único verdadeiro arrependimento da minha vida. Tinha comprado um estúdio (...) para concretizar o sonho de fazer Cinema ao Vivo, e porque Vittorio me importava tanto, e provavelmente também porque tinha medo do que estava a tentar fazer, cedi.”
Ironia das ironias: Coppola realizou Do Fundo do Coração, antes de mais, para se salvar do iminente rombo que supunha vir a ser causado por Apocalypse Now, mas foi precisamente esse maravilhoso ato preventivo que lhe ditou a ruína. Tinha comprado os Hollywood General Studios, que converteu em Zoetrope Studios, num ímpeto de proposta alternativa de cineasta independente, mas terá sido mais o barulho do ferro-velho do que a melodia visual dos gigantes olhos da gata Kinski que ficou a ressoar na sua aventureira mente criativa. Na história do cinema americano - qual máquina ou organismo vivo, conforme o ângulo de análise -, ele é um dos dignos “cineastas malditos”, marcado pelas cicatrizes de um modus operandi que põe a ambição desmesurada ao serviço de um avanço para o qual talvez ainda nem estejamos preparados. É o Erich von Stroheim ou o Orson Welles do seu tempo. Em 1982 como agora.