O regime bolorento da chanceler Kate Winslet
Quem lida com humidade em casa conhece a sensação desagradável de, volta e meia, identificar uma mancha negra a formar-se na parede ou encontrar um objeto coberto por aquela camada de fungos cujo cheiro permanece algum tempo no olfato. É uma chatice para o ser humano comum, e o desumificador não resolve. Agora imagine-se uma pessoa da esfera do poder tão obcecada com esse problema que contrata um guarda-costas para a proteger, não propriamente de ameaças à integridade física, mas do nível de humidade do ar: ele caminha à frente dela pelos corredores do palácio com um higrómetro na mão, informando-a constantemente das variações de percentagem que o aparelho regista. A pessoa em causa é Elena Vernham, a chanceler interpretada por Kate Winslet em The Regime – série que se estreia hoje na HBO Max –, e o assistente matulão chama-se Herbert Zuback, um soldado violento a que Matthias Schoenaerts dá a devida presença corpórea e vigilante.
Enquanto ponto de partida desta história, a humidade do ar talvez seja o aspeto mais original e cómico da criação de Will Tracy, showrunner que antes coassinou o argumento de The Menu, uns episódios de Succession e outros de Last Week Tonight with John Oliver. Com efeito, ver um problema “do mundo real” afetar o palácio de uma líder autoritária tem o seu toque brilhante de sátira política, mesmo que a sátira perca força e nitidez demasiado cedo... Estamos algures na Europa Central, num país não identificado, e a tal chanceler Vernham luta no seu íntimo para manter sob controlo, em simultâneo, a tendência hipocondríaca (relacionada com a morte do pai por doença pulmonar), carência psicológica e poder político. Médica abastada que deixou a carreira para trás, ela é uma figura ridícula, que se diz “very much not ridiculous”, mas não consegue disfarçar o lábio descaído da sua insegurança.
É aí que o guarda-costas vê uma oportunidade: aquela mulher não tem ideologia nem convicções e, apesar de ser casada e estar rodeada de ministros, precisa de alguém capaz de lhe dar ideias que possa reclamar para si própria e parecer confiante ao assumi-las. Herbert, no fundo um representante do povo invisível daquele país fictício, vai assim ganhar a confiança da chanceler, ao ponto de ela passar a seguir estritamente os seus conselhos, refletidos, por exemplo, numa súbita crença em medicina popular, que afeta os hábitos domésticos dentro da sua propriedade (adeus desumificadores, olá vapor de batata...), e na adoção de uma política externa isolacionista. Junta-se a isto um ingrediente explosivo: ele está apaixonado por Vernham, e uma brincadeira “inofensiva” sobre encontrarem-se em sonhos acaba por alimentar uma parceria perigosa.
Ponto de vista precisa-se
Depois de ficar clara esta fórmula palaciana, The Regime parece não ter muito mais a dizer sobre nada em particular, embora tente arranhar a superfície de todos os cenários da questão óbvia que aborda. Ao longo dos seus seis episódios, que retratam a evolução ditatorial da protagonista dentro de quatro luxuosas paredes (com piscadelas de olho às práticas de Putin, como os discursos regulares à nação), a única lógica subjacente é a de que os aprendizes de déspotas são uma espécie a evitar – ou, basicamente, seja quem for que deseje exercer o poder é má rés. OK, e então? Como elaborar sobre isso?
Nos dois primeiros episódios ainda há uma boa impressão de estranheza, assente na expectativa de que a construção geral das personagens, e a vontade explícita de comentar o estado das coisas, vá ganhar consistência ou desviar-se da linha previsível. Mas, pelo contrário, a série torna-se cada vez mais arredondada, familiar, sem acutilância de diálogos ou ponto de vista (imagine-se o que seria uma pitada do Veep de Armando Iannucci aqui) e dependente do (des)empenho de Kate Winslet, que, nunca desiludindo, é um primor de linguagem corporal, a funcionar quase como uma potência isolada no panorama gasto.
Nem mesmo a realização do veterano Stephen Frears, que assina metade dos episódios, a banda sonora de Alexandre Desplat, que tenta reforçar o valor humorístico com notas condizentes, ou a aparição de Hugh Grant num papel secundário, conseguem tirar The Regime de uma zona de simpática ineficácia, ou sensação de incompletude. Como se Will Tracy não tivesse fechado a ideia do argumento, e por vezes não se soubesse exatamente qual a razão de ser de determinada cena, resolvendo-se a constante imprecisão da escrita com um excesso de indicadores visuais, como ângulos inclinados e o impecável guarda-roupa de Winslet, que cria alguma dinâmica colorida – nunca suficiente para acrescentar impulso à sátira.
Porém, esses momentos em que nos é permitido apreciar, pura e simplesmente, Kate Winslet em modo de liderança, ou melhor, na pele de uma personagem que consegue a espaços fingir um estilo autoconfiante, há uma visão sólida da atriz que em tempos recentes se tornou produtora executiva numa base regular (desde a série Mare of Easttown): “Sinto que agora, quando falo sobre o meu trabalho e carreira, e também sobre produção, posso expressar não só gratidão, mas também um conhecimento real. Conquistei meu lugar nesta mesa”, disse a intérprete britânica à revista Forbes, a propósito do seu papel como produtora executiva de The Regime. E esse tom notório de conquista à frente e atrás da câmara será, de facto, o mais apreciável numa série que retrata o poder bolorento sem fazer muito mais do que registar o nível de humidade do ar em território europeu. Bem, já é qualquer coisa.