É sempre estimulante descobrir um filme capaz de nos convocar para espaços, histórias e personagens que desconhecemos ou nos limitamos a “figurar” através da (des)informação acelerada que nos rodeia. Abril, da georgiana Dea Kulumbegashvili (n. 1986), premiado nos festivais de Veneza e San Sebastián, é um desses filmes: um retrato seco, desencantado, por vezes de uma crueza à beira do insustentável, de uma Georgia rural distante de tudo aquilo a que, com maior ou menor justificação, damos o nome de civilização.Aí conhecemos Nina, numa excelente composição de Ia Sukhitashvili (atriz também georgiana, n. 1980), médica obstetra a enfrentar uma situação duplamente dramática: por um lado, há cada vez mais rumores das suas práticas de abortos (proibidos por lei) em mulheres que procuram a sua ajuda; por outro lado, enfrenta uma acusação de negligência num parto realizado no hospital onde trabalha.Daí a tratar Abril como um panfleto sobre o direito ao aborto vai um passo que, a meu ver, importa evitar, sob pena de reduzirmos um trabalho especificamente cinematográfico à ilustração de uma causa que, escusado será dizê-lo, não pode ser desligada do contexto social e cultural em que se afirma. Nina não é uma militante, antes alguém que tenta contrariar a miséria existencial do mundo em que vive, ao mesmo tempo que procura resistir aos fantasmas que a assombram - observe-se a radical perturbação emocional da cena em que se oferece, sexualmente, a um homem a que deu boleia.Aquilo que distingue um filme como Abril não é, de facto, a organização panfletária de um discurso. Deparamos, sim, com a afirmação de uma vontade de realismo que, nos dias que correm, envolve uma importante demarcação em relação às generalizações naturalistas (não poucas vezes, esquematicamente panfletárias) que proliferam no espaço televisivo - os longos planos das estradas que Nina percorre nas suas deambulações pelo mundo rural são exemplares dessa desencantada visão em que as personagens, homens e mulheres, vivem uma tragédia comum.É bem verdade que Kulumbegashvili corre o risco de confundir a depuração das suas formas com a instalação de um formalismo que, aqui e ali, parece desinteressar-se da complexidade das personagens; além do mais, a pontuação da ação por uma figura abstrata (uma espécie de espetro que pode aparecer em qualquer lugar) não será a ideia mais adequada para sustentar a energia realista do filme. Seja como for, depois de uma primeira longa-metragem, O Começo (2020), sobre a desagregação de uma comunidade religiosa, o seu trabalho distingue-se por um risco narrativo que continua a justificar a nossa atenção..'Com a Alma na Mão, Caminha'. Notícias de Gaza para lá da televisão.'Love Life'. Cinema japonês, com amor