Tanto Bruce Chatwin com José Eduardo Agualusa situaram muitos dos seus escritos no continente africano e na sua mitologia.
Tanto Bruce Chatwin com José Eduardo Agualusa situaram muitos dos seus escritos no continente africano e na sua mitologia.D.R.

O que fazem aqui Chatwin e Agualusa?

Dois viajantes literários unidos pelo ano de 1989, o da morte do inglês e o da publicação do primeiro romance do angolano.
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Seis meses após ter morrido (18/01/1989), o nómada Bruce Chatwin – nessa altura os nómadas ainda não eram digitais mas viajantes – teve direito a uma crítica literária assinada por Hilary Mantel na Literary Review. A publicação tinha apenas uma década de vida e o compromisso de estar atenta aos livros mais interessantes de cada mês nas áreas de história, biografia, ficção e viagens. Ora é neste último género que o livro, O que faço eu aqui?, de Chatwin é analisado e a recensão encomendada a Mantel, que dá como título ao artigo Ser um nómada. Chatwin não era um desconhecido mas ainda não era o artista da palavra em que se tornou nem sinónimo do viajante/escritor que continua a justificar reedições dos seus livros deste e de outros géneros. “Faltava-lhe” a morte que mitifica. Uma coisa é certa, desde o primeiro livro que publicou, Na Patagónia (1977), que chamou à atenção, transformou o sul da América do Sul num hino a um mundo mais virgem, e impôs o género que só autores importantes poderiam incluir nas suas bibliografias sem serem desclassificados.

Introduzido na categoria de autor de livros de viagem, Chatwin passou a pertencer a um mundo profissional completamente diferente. Fora especialista em antiguidades e pintura na Sotheby’s, escrevia artigos sobre arte e arquitetura para o The Sunday Times Magazine, cujo editor o convida para escrever sobre temas tão diferentes como o dos imigrantes argelinos ou a Grande Muralha da China, e conhece vários famosos da época, entre os quais uma arquiteta, Eileen Gray, que, segundo o seu biógrafo, Nicholas Shakespeare, tinha pintado um quadro com parte da geografia da América do Sul, onde se destacava a Patagónia. Chatwin confessou que há muito que desejava viajar até lá e Gray disse que também sonhava com o mesmo e desafiou-o: “Vá lá por mim”. Assim aconteceu.

Após Na Patagónia e além dos três livros póstumos, estão quatro livros de sua autoria, bem como O que faço eu aqui?, publicado quatro meses antes da sua morte. O mais “interessante” para os leitores portugueses interessados na sua história será o segundo, o romance O vice-rei de Ajudá, pois é o retrato de um dos maiores mercadores de escravos que veio do Brasil e se instalou no Forte de Ajudá, o menor enclave de todos os territórios portugueses. Chatwin teve notícia desse traficante quando visitou o Daomé em 1972 e ao regressar quatro anos para investigar a história foi apanhado numa revolta, é acusado de ser mercenário e preso por três dias. A história dessa prisão é um da que estão incluídas nesta recolha de textos: Um golpe de Estado – Uma história.

Voltando a Hilary Mantel e ao artigo na Literary Review sobre O que faço aqui?, nota-se constantemente o seu grande espanto sobre as histórias que Bruce Chatwin reunira nesse volume e definiu a sua inspiração assim: “Só há uma justificação para estar sempre a viajar: ‘O verdadeiro lar de um homem não é a sua casa, mas a Estrada, e a sua vida uma caminhada para ser feita a pé`.” Para confirmar esse seu espanto perante o espírito de viajante de Chatwin, Hilary Mantel só encontra uma palavra: “Bizarro”. Justifica: “É um adjetivo muito na moda hoje, mas ao ler estas páginas o que não lhe faltará é bizarria”. E dá exemplos: encontra nos Camarões um comerciante de Hong Kong que contraiu sífilis, no Gana conhece o Bar As bebidas dos Aiatolas, apanha temperaturas escaldantes, vê populações doentes, faz um cruzeiro no rio Volga, visita a casa de Lenine adolescente, repete os passos de Robert Byron no Afeganistão, vai ao Nepal à procura do Yeti….”

 Os dois primeiros textos são sobre a sua estada no hospital e uma funcionária que cuida de Chatwin. Sente dores e febres há três meses e nenhum médico descobre qual a doença - a SIDA ainda era desconhecida. Mesmo esse duo de textos mais diretos não foge ao que o editor deste livro (e do que se segue), Francisco José Viegas, resume em poucas palavras: “A verdade é que Chatwin é incapaz de se calar. Fala (escreve) interminavelmente.”

Quem também é incapaz de escrever interminavelmente é José Eduardo Agualusa a quem se poderia atribuir uma frase de Bruce Chatwin sem se estranhar a autoria: “Toda a minha vida tem sido uma busca pelo surpreendente”. É o que o leitor do seu último romance, Mestre dos batuques (2024), e da sua mais recente recolha de contos, Quero ser os teus domingos (2025), encontra na prosa oferecida pelo escritor angolano. Livros separados por menos de um ano, arredondam a obra para 34 títulos e em ambos o leitor se questiona sobre a origem da inspiração do autor. O romance, disse Agualusa numa entrevista no seu país, “é um falso romance na medida em que acompanha a história de Angola até um certo ponto e tem depois uma história alternativa, a do Reino do Bailundo.” É verdade, pois o livro surpreende logo às primeiras páginas e um acontecimento vai prender o leitor até ao fim. Foi um dos romances mais consistentes do seu ano.  

Quanto aos outros “contos para o recomeço do mundo”, aí fica bem explícito que a arte do conto é bem dominada por José Eduardo Agualusa e que os textos lutam entre si para surpreender o leitor. Um bom exemplo é O vampiro de Berlim, mas antes deste já outros disputaram o prazer da leitura e a surpresa da invenção, como O eco ou A pedra do refúgio. Afinal, o domínio destes dois géneros vem de longe: o seu primeiro romance, A Conjura, de 1989 e Prémio Revelação Sonangol; o seu primeiro livro de contos, D. Nicolau Água-Rosada e outras estórias verdadeiras e inverosímeis (1990).

Está na hora de explicar o que fazem aqui Bruce Chatwin e José Eduardo Agualusa num mesmo texto? Diz-se que Bruce Chatwin recriava em muito a realidade, até em Na Patagónia, o livro que o encaixou para sempre na prateleira do escritor de viagens mas que o próprio não negava ser muito inventivo em relação à realidade. Já Agualusa não o precisa de fazer, apesar de ser também muito inventivo em relação à realidade. Daí que escreva num dos contos que “o universo não é só mais estranho do que imaginamos, mas mais estranho do que somos capazes de imaginar”.

O QUE FAÇO EU AQUI?

Bruce Chatwin

Quetzal

388 páginas

QUERO SER OS TEUS DOMINGOS

José Eduardo Agualusa

Quetzal

228 páginas

LANÇAMENTOS

OS DETALHES DA LITERATURA

Não será fácil selecionar os melhores ângulos para se desvendar o mundo da literatura, mas o filólogo madrileno Díaz Pardo decidiu fazê-lo e com perguntas atuais, como “Pode um best-seller ter qualidade?”. A partir desta questão está aberto o apetite para muitas histórias, como “Que novas formas literárias tem inventado a literatura atual?”. Um verdadeiro curso de literatura com início no teatro grego clássico.

A LITERATURA UNIVERSAL EM 100 PERGUNTAS

Felipe Díaz Pardo

Guerra & Paz

301 páginas

UMA PROFISSÃO PERIGOSA

Carmen Posadas inicia o seu livro com uma confidência: “Sempre me considerei uma espia.” Ora quando o título do livro é Licença para Espiar e se sabe que a autora era filha de um diplomata que viveu em Moscovo nos anos 1970, só se pode acreditar no que ela diz: “Viver na União Soviética naqueles anos era como participar num filme de espionagem.” Um romance completo sobre o lado feminino desta profissão. 

LICENÇA PARA ESPIAR

Carmen Posadas

Casa das Letras

447 páginas  

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