Em outubro de 1927, o cinema mudo viu a sua morte anunciada com o nascimento do som sincronizado no filme The Jazz Singer. O momento foi tão desorientador, tão marcante, que a própria indústria americana não resistiu a regressar ao tema, em modo de sátira, naquele que se tornou o mais famoso musical de todos os tempos, Serenata à Chuva (1952), um retrato do drama da transição técnica, baseado nas anedotas de bastidores contadas pelos veteranos dos estúdios de Hollywood. É esse capítulo que a Cinemateca coloca no inconsciente do espectador ao longo dos próximos meses, até finais de 2027, ao percorrer uma história possível do cinema mudo, que terminou, há quase cem anos, com a “invasão” do elemento sonoro, antes confiado à força expressiva dos atores e ao piano que acompanhava as sessões.O ciclo “Viagem ao Fim do Mudo”, serve então como oportunidade de trazer para a linha da frente o trabalho dos pianistas residentes da Cinemateca. Ao ritmo de três sessões mensais, Filipe Raposo, João Paulo Esteves da Silva e Daniel Schvetz vão ajudar a construir a narrativa de uma época que nos chega revestida pelo manto delicado da música ao vivo, escrita e interpretada em comunhão com grandes clássicos, dignos representantes do cinema mudo, aqui chamados pelo seu estatuto de obras-primas.No dia 12 de setembro (19h00), passa O Couraçado de Potemkine (1925), exemplar supremo do cinema vanguardista de Sergei Eisenstein, com a antológica sequência do massacre na escadaria de Odessa – a sessão é acompanhada ao piano por João Paulo Esteves da Silva. Na sexta-feira, dia 19 (21h30), é a vez de O Último dos Homens (1924), do alemão F.W. Murnau, a história da queda social de um velho porteiro de hotel, interpretado por Emil Jannings com a mesma carga trágica que alcançou como professor caído em desgraça, no filme O Anjo Azul – neste caso, será Daniel Schvetz o pianista ao leme. E hoje mesmo, dia 1 (19h00), o ciclo abre com O Vento (1928), do sueco Victor Sjöström, sublime pesadelo ciclónico no deserto americano, com Lillian Gish a aprender a domar o medo num vendaval de amor e morte.Esta sessão é de entrada gratuita, e o acompanhamento musical está a cargo de Filipe Raposo, o pianista e compositor que conversou com o DN sobre a sua ligação ao cinema. . “Cada sessão é única”O que é que isto de acompanhar ao piano imagens em movimento lhe deu enquanto compositor?Eu comecei a colaborar com a Cinemateca em 2004, e é desde essa altura que o cinema mudo faz parte, também, da minha prática artística. Ou seja, ao longo destes 21 anos, fui-me apercebendo de que o cinema estava a moldar em mim uma visão composicional – acabo por assumi-la como uma herança. Desde a sensibilidade para a imagem, a fotografia, o trabalho dos atores e toda a hierarquia do que acontece numa cena, até à banda sonora, claro, fui submergindo neste grande oceano que é a Sétima Arte. Aliás, a Trilogia das Cores [volumes em edição discográfica e literária], onde abordo as três cores de Orfeu – vermelho, preto e branco –, está cheia de símbolos cinematográficos... É algo que já é inerente à minha forma de compor.Como é que se prepara para este trabalho? Confia nalgum nível de improvisação?Diria que há um processo híbrido. Primeiro, há uma leitura que faço do filme, e essa é uma fase obrigatória, de modo a compreender o guião, a direção do realizador, o que é que ele pretende, etc. Costumo dizer que tenho um diálogo com o realizador antes de começar a trabalhar no filme; uma espécie de estado da arte ou mapeamento. Depois há uma atribuição de melodias às personagens, os chamados leitmotivs, que funcionam como um farol a sinalizar a sua posição ao longo do filme, em jeito de reconhecimento sonoro. E, por sua vez, o leitmotiv vai desenvolver-se posteriormente numa linguagem improvisada. De resto, cada sessão é única. O público que estiver presente será o fiel depositário do que ali acontecer: não consigo reproduzir duas vezes a mesma sessão.Há algum realizador do mudo com quem tenha uma relação musical mais próxima?Podia referir vários realizadores, é difícil escolher apenas um. Mas dentro do género cómico-sério – lembro-me daquela frase, “rindo se castigam os costumes” –, o Buster Keaton e o Chaplin destacam-se. Digo isto porque acompanhei dezenas de filmes de ambos nas sessões da Cinemateca Júnior. Mas depois há a síntese brutal do Murnau, e o Victor Sjöström, claro... Eu vivi dois anos na Suécia e tive oportunidade de estudar um bocadinho mais a cinematografia sueca.Precisamente, qual o simbolismo de agora começar o ciclo com O Vento, de Sjöström?Pegando na expressão “ventos de mudança”, este filme é um bom agoiro, em termos de início de ciclo. Um ciclo que vai até 2027! Estamos a falar de um vento que se escuta através do olhar. Ele faz-se sentir, entra pela sala. Na verdade, há várias formas de tornar o filme sonoro, e talvez a mais poderosa seja a nossa imaginação.Enquanto toca, costuma espreitar a reação do público, no escuro?Sim, de vez em quando passo os olhos pelo público, e é gratificante quando se percebe que as pessoas estão envolvidas. Aliás, um dos melhores elogios que já me fizeram foi dizer que, às tantas, deixaram de se lembrar que o piano estava na sala... O nosso trabalho não deve ser impositivo, é uma coisa de filigrana..'Mensagem' de Pessoa vai ganhar 50 milhões de potenciais leitores ao ser traduzida para odia