Primeira longa-metragem de Alice Diop a estrear nas salas portuguesas, Saint Omer é também a estreia na ficção desta realizadora francesa que vinha ganhando destaque no documentário. E talvez possamos começar por aí: apesar de ser um drama, Saint Omer não deixa de conter a essência de um objeto documental. Porquê? Desde logo porque a situação dramática no centro do filme nasce de uma experiência pessoal de Diop, que em 2016 se dirigiu à cidade de Saint-Omer para assistir ao julgamento de uma mulher, de ascendência senegalesa (tal como a realizadora), acusada de infanticídio. O que resultou dessa assistência - o confronto com uma narrativa feminina capaz de trazer à tona verdades complexas sobre a maternidade e não só - é parte da vitalidade deste filme fascinante, vencedor do Grande Prémio do Júri no último Festival de Veneza..Pode dizer-se então que a referida experiência "desenha" a abordagem das cenas de tribunal (que são quase o filme todo), apresentadas em planos fixos das personagens: as que falam e as que escutam. Aqui, o alter ego de Diop é Rama, uma escritora e professora de literatura que segue para Saint-Omer com o propósito de recolher os pormenores do caso de Laurence Coly (na vida real, Fabienne Kabou) para um novo romance, cuja história tenciona relacionar com o mito de Medeia. Mas à medida que Rama (interpretada por Kayije Kagame) vai ouvindo os interrogatórios ao longo das sessões, algo suspende dentro de si a questão da culpa da mulher que está a ser julgada....Importa esclarecer à partida que, embora se trate de um inequívoco drama de tribunal, Saint Omer não é um filme sobre o julgamento tout court, mas sim sobre uma espécie de afinidade secreta, subterrânea, que pode ligar duas mulheres em posições diferentes na mesma sala. Ou seja, enquanto Rama ouve Laurence desfiar, muito articuladamente, todos os aspetos relevantes da sua vida, até chegar ao ponto em que descreve como abandonou a filha de 15 meses numa praia em noite de maré cheia - ela assume que o fez mas declara-se inocente, vítima de feitiçaria, à falta de melhor explicação -, a escritora vai ganhando consciência daquilo que a aproxima da jovem mulher, para lá da aversão ao crime praticado. O que as une não será apenas o facto de ambas terem origem senegalesa e de serem pessoas formadas (Laurence era estudante de Filosofia), mas sobretudo as emoções confusas em torno da maternidade, que remetem para as figuras das respetivas mães... E há ainda uma enorme solidão feminina, que em Laurence se reforça pela condição de imigrante exposta ao olhar frio da justiça francesa..Neste contexto, é também um filme que escapa à mais comum lógica fílmica do julgamento, porque na sua exploração da linguagem, com momentos que são autênticos monólogos, transforma o apuramento da verdade, próprio da dinâmica do tribunal, num subtil processo de catarse impercetível aos mecanismos da justiça. Tudo vai dar à empatia humana e ao modo como Laurence (uma tremenda Guslagie Malanda) se oferece à nossa perceção enquanto mulher que está para além do seu crime. Estamos perante uma personagem que se define exclusivamente pelo uso da palavra (de resto, não a vemos fora daquela sala), e nessa narração de si própria afasta os métodos de sensacionalismo típicos dos dramas baseados em crimes reais..De facto, o que Alice Diop faz com a matéria da oralidade é admirável, precioso e surpreendente. Ao ouvirmos Laurence, tal como Rama a ouve - é esse o canal íntimo que o filme trabalha -, estamos a aceder a um retrato oculto da vida francesa, uma reflexão social que não se cinge à mulher sentada no banco dos réus. Mais ou menos o que alcançara Truman Capote com o romance de não-ficção A Sangue Frio, sobre o assassinato de uma família em Holcomb, Kansas, e os dois autores do crime: a sua investigação permitiu destapar a América que criou aqueles assassinos. Mas ao contrário de Capote, que na nota de abertura escreve que "o material contido neste livro não é produto da minha observação direta", o que dá ao filme de Diop uma força extraordinária é essa "observação direta" de uma circunstância. Não do crime mas do seu relato, que, pelo nível de detalhe, permite formar uma imagem precisa..Ainda antes de Rama se deslocar a Saint-Omer à procura do seu suposto tema literário, vemo-la numa aula a falar aos alunos da sublimação do real na escrita de Marguerite Duras. É um conceito que de alguma forma comunica com o que Diop conseguiu aqui: algo parecido com uma purificação, através do contacto com uma história que provoca interrogações femininas profundíssimas, quase ancestrais. No fim de contas, Saint Omer será um filme sobre a reação de uma mulher negra às palavras de outra mulher negra, a partir de um ângulo que extravasa a aparente simplicidade visual de tudo isto. A luz que se vai insinuando - e não se confunda com a claridade sugestiva da sala onde decorre o julgamento - é do foro da inteligência emocional. E que inteligente e emocionante, sóbria e tocante é esta obra de uma cineasta em revelação..dnot@dn.pt