O génio de Kaurismaki e a excelência de Justine Triet
Álcool e corações quebrados em Fallen Leaves, de Aki Kaurismaki, culpa e rancor em Anatomie d"Une Chute, de Justine Triet. A corrida à Palma de Ouro ao rubro num festival que foi rampa para o anúncio do novíssimo Mediterrane Film Festival, em Malta.
Da primeira parte desta competição, importa enaltecer o bom nível dos filmes apresentados, mesmo com algumas desgraças evidentes, em especial Black Flies, Jean-Stéphane Sauvaire, e Banel e Adama, de Ramata Toulaye-Sy. Mas o que pode reclamar ouro , até agora, são duas obras extraordinárias. Da Finlândia esse majestoso Fallen Leaves, de Aki Kaurismaki, e de França, mas quase todo falado em inglês, Anatomie d"une Chute, da sempre excitante Justine Triet.
Relacionados
Kaurismaki entra na história de amor de uma ideia de proletariado de Helsínquia para nos dar um casal de sonho: ele, um operário alcoólico, ela uma empregada de super-mercado solitária. Os dois apaixonam-se mas desencontram-se numa cidade de karaokes, bares beras e o peso da invasão russa na Ucrânia que se ouve nas rádios. Às vezes, o amor não cai do céu quando há ressaca e quem prefira fumar a estar sempre a dar ao dedo num smartphone...
O cinema do finlandês atinge aqui um grau de perfeição que só é atingível por um estado de graça de alma. Com efeito, tudo parece ser filmado com a alma aberta: seja através dessa poção de nos transportar para o efeito de uma paixão à primeira vista, seja pela forma feliz como se repetem os efeitos do seu estilo: da pose dos atores à inserção do rock n"roll e outras músicas que aqui desfilam. Uma genialidade que está no ponto, nada a mais, nada a menos. O humanismo a transbordar num filme que parece feito para os fãs - convém sempre recordar que o homem nunca venceu a Palma de Ouro: pode mesmo ser desta.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
O estrondo de uma queda
Mas também há esse momento chamado Anatomie d"une Chute, da realizadora de Sybil, Justine Triet, que também competiu aqui em 2019. Sandra Huller é uma escritora acusada de assassinar o seu marido também escritor. O seu filho único, criança cega, não viu o pai que terá ou sido morto, ou cometido suicídio. Mas é ele quem pode ter a chave da verdade através de uma recordação. Muito mais do que um "filme de tribunal", esta crónica trágica é um poderoso dilema moral sobre as verdades de cada um. E é essencialmente uma elaborada descida aos infernos sobre uma crise conjugal: marido e mulher em contra-fogo com questões como vaidade artística, poder, infidelidade e egoísmo. Metodicamente, essa força dramática vai para além do transcendental - a espaços há momentos que evocam sem medos o poder da tensão bergmaniana, coisa tão sublime nestes dias... Triet tem esse tipo de ambição, essa intensidade que nos deixa KO perante a falha e o fim do amor. Sai-se dilacerado da projeção...
Cannes dá as boas vindas ao Mediterrane!
No Mercado, este ano com recorde de acreditações, há muitos festivais que usam a presença da imprensa para fazerem a sua publicidade. Acabou de ser lançado aqui um novo festival, joint venture de oito países com Malta, O Mediterrane Film Festival, a ter lugar já para no mês que vem em Valeta. Um festival que quer ser relevante e tem Portugal como um dos países cúmplices. Pretende-se sobretudo criar uma força de produção entre as nações do Mediterrâneo. Sabe-se já que Alma Viva, de Cristèle Alves Meira, estará numa competição a ser julgada por jurados de cada um dos nove países (estaremos representados pelo jornalista José Vieira Mendes) e que Joaquim de Almeida é um dos convidados de honra.
dnot@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal