O género literário de que os escritores portugueses fogem
É raro entre os escritores portugueses a escrita do romance histórico bem distante, como decidiu João Nuno Azambuja fazer em Breviário da Vingança, situando-o no primeiro século depois de Cristo. Mesmo que nos últimos anos certos autores nacionais tenham explorado este filão, não vão tão longe apesar de a história de Portugal permitir regredir quase nove séculos, ficando-se na maioria das tentativas pelos últimos quinhentos anos e transformando em protagonistas reis e rainhas que apelam à curiosidade dos leitores. Azambuja foi mais longe, e transformou como cenário deste seu novo romance, o quarto, uma época em que só poucos autores estrangeiros se aventuram. A exceção nacional reside praticamente em João Aguiar que utilizou, entre vários temas, o tempo de Viriato no seu romance de estreia, A Voz dos Deuses (1984).
Azambuja vai mais longe e escolhe um cenário de grandes lutas entre romanos e outros povos dessa época para Breviário da Traição, e fá-lo com grande perícia, até porque escrever sobre assuntos de há dois mil anos não é um processo fácil. Quando se lhe pergunta a razão de ter enveredado por um tempo tão antigo, justifica: «Quando escolho um tema, escrevo sem pensar se o livro vai ser deste ou daquele género, daí que com este romance possa haver a tendência para o caracterizar como histórico porque a ação decorre no século I, no entanto o que pretendi foi unicamente escrever um livro. Não foi por acaso que a temática é essa, mas porque os acontecimentos e as personalidades dessa época são verdadeiramente fascinantes devido a ser um período de conturbações profundas que mudaram o rumo dos tempos, como a revolução cristã.»
Há uma segunda razão para o ter escrito num passado tão distante, como explica: «Tudo aconteceu devido a uma leitura mais aprofundada do Novo Testamento, principalmente das epístolas de São Paulo. Enquanto as ia lendo, fui-me deslumbrando com o génio deste homem. A sua força de vontade, a sua convicção, a sua capacidade argumentativa e persuasiva, são impressionantes. Cativou-me de tal maneira que decidi escrever acerca dele e da sua época. No romance, ele ainda é conhecido pelo seu nome, Paulo de Tarso, o maior advogado - no sentido de defensor de uma causa - de todos os tempos, até superior a Cícero. A acrescentar, houve um facto que desde sempre me seduziu nele: a sua conversão ao cristianismo.»
Esta mudança drástica de Paulo de Tarso está em muito na base desta peregrinação literária, como justifica João Nuno Azambuja: «De maior perseguidor dos cristãos tornou-se no seu maior defensor. Uma situação muito mal explicada na Bíblia, mesmo com algumas contradições, e questionava-me sobre a verdadeira causa para uma metamorfose tão radical e inesperada. Ele explica-a com um milagre repentino, mas essa justificação não servia a minha curiosidade, quanto mais não seja porque leio as Escrituras como crítico e não como crente. Creio que nunca iremos saber o que realmente se passou, por isso é que este acontecimento absolutamente apaixonante se presta a ser romanceado, tal como fiz neste romance, nunca deixando de estar focado na conjuntura da época. Paulo, ao tomar essa decisão só ao alcance de um génio, a de mudar o mundo depois de uma estranhíssima conversão, fê-lo combatendo somente pela palavra a então maior potência da Terra: o império romano.»
Sendo a formação do escritor em História e tendo participado em explorações arqueológicas, pergunta-se se se poderá dizer que um passado destes facilitou esta deriva literária? Não nega, mas junta outros argumentos: «Concordo que a formação contribuiu, porque revestiu essa paixão de um espírito mais rigoroso e também crítico. Contudo, a minha formação e prática em tais áreas mais não são do resultado de uma paixão inata pelos acontecimentos do passado que nos conduziram ao nosso tempo.»
A imensa reprodução da época que usa no Breviário da Traição exige muito conhecimento daquele tempo para ser credível. Como foi investigar e escrever sobre esse primeiro século da nossa era, é o que se quer saber do escritor. Refere algumas das etapas: «Investiguei principalmente através da leitura de obras da época ou referentes a ela, e também estudando mapas e descrições dos locais, como a cidade de Roma nessa altura ou a Germânia, a Judeia, e até o Egipto. As obras de autores desse tempo foram fundamentais para captar pormenores da vida quotidiana ou de recantos de certos lugares. Tácito foi o meu esteio mais importante, porque ele esmiúça os eventos em causa, além de que foi imprescindível ler toda a obra de Séneca.» Também os poetas lhe deram uma ajuda crucial, diz: «Vergílio, Horácio ou Ovídio, entre outros autores que “estiveram comigo” durante este longo processo de investigação, como Júlio César, Suetónio, Plutarco, Dião Cássio, Petrónio, Apuleio, Veleio Patérculo, Marco Aurélio, Plínio (o moço), Flávio Josefo, e muitos outros, além de, claro, a Bíblia.»
Atualmente, a edição de um livro não depende apenas de um capricho do autor, é necessário ter em conta se existe ou não espaço para um género ou se não se enquadra num nicho insuficiente para ter sucesso editorial. Pode dizer-se que João Nuno Azambuja tem uma perceção pouco comercial: «Há espaço para o que se quiser fazer na literatura, e um livro, aborde o tema que abordar, ou é bem escrito ou mal escrito. Não considero que este romance seja dirigido a um nicho de leitores e a arte é como o espaço sideral: haverá sempre lugares para explorar.»
Colocando a narrativa em tão recuadas épocas, acredita Azambuja que os leitores irão apreciar a descoberta de antigos hábitos, de situações, atitudes e formas de pensar em muito diferentes dos atuais? Sobre essa apetência não tem dúvidas: «Estou certo de que os pensamentos dos antigos são os mesmos que os nossos, por isso é que este romance só é histórico por a ação decorrer numa outra época. Ler os antigos é vermo-nos ao espelho. A sede de vingança, explorada no enredo, é um sentimento que se alastra nos nossos dias com uma intensidade exacerbada, afinal assistimos a guerras devastadoras motivadas por ela. Mas no Breviário da Vingança impera igualmente a amizade e a árdua busca da tranquilidade. Se muitos hábitos se alteraram, também não se pode dizer que mudaram assim tanto, e a vida do dia a dia na velha Roma espanta-nos muitas vezes pela semelhança com a nossa. Ir ao ginásio e comprar comida rápida já existia na antiguidade. As circunstâncias serão diferentes, não o nego, no entanto será uma descoberta apaixonante.»
O novo romance está repleto de constantes traições, de vinganças, de disputas «tribais» e de guerras constantes entre «nações». É o fermento literário que se exige numa história como é a do Breviário da Vingança, questiona-se. Azambuja considera que foi cuidadoso: «Nesse aspeto, fui mais comedido do que os historiadores antigos, que descrevem muito mais convulsões do que as do meu livro, mas devemos ter em conta que o romance decorre num período de tempo de sessenta anos, nos quais muitas coisas aconteceram e no qual muitas circunstâncias podem alterar-se radicalmente. Contudo, garanto que essas traições, vinganças e guerras sobre as quais escrevi aconteceram realmente.»
Entre as dezenas de personagens destaca-se uma mulher, Aurínia, que não teve existência física. Aliás, tê-la criado vem mostrar uma realidade nem sempre é referida em obras deste género, como Azambuja recorda: «Houve grandes mulheres na Antiguidade, mulheres que se impuseram em sociedades dominadas pelos homens, e Montaigne até destaca, nos seus Ensaios, personalidades do sexo feminino que sobressaíram pela força do seu carácter, como Paulina, a esposa de Séneca. Dei-lhes destaque porque foram realmente grandes mulheres. Tusnelda, a esposa de Armínio, de quem o pai dela era inimigo figadal, enfrentou todas as convenções para se juntar àquele que amava. Depois de capturada pelos romanos, nunca mostrou sinais de fraqueza. Outra mulher que se impôs, lutando contra o facto de ser mulher a impedir de governar, foi Agripina, a mãe de Nero, que subiu a pulso e chegou perto de governar efetivamente Roma. A mãe dela, também chamada Agripina, foi outra mulher de garra, ao ousar combater as injustiças do imperador Tibério. Um caso que me impressionou foi o de Epícaris, mulher sem qualquer importância social e que, quando foi presa na sequência de uma conspiração contra Nero, sofreu torturas horríveis para que revelasse os nomes dos conspiradores, que ela sabia quais eram, mas preferiu morrer para não trair a causa, como descreve Tácito.»
Em o Breviário da Traição também existe um governador da Lusitânia. O autor não pretendeu apenas incluir uma referência ao seu país: «Marco Sálvio Otão foi realmente governador da província da Lusitânia antes de derrubar Galba para se tornar imperador. Ele foi colocado por Nero nessa província, e como sucedeu a Galba, que tem grande preponderância no romance, era quase inevitável referir a Lusitânia. Até descobri uma curiosidade: Galba foi governador da província Tarraconense, onde ficava Braga, a minha cidade, e é mais do que provável que ele tenha estado nesta localidade.»
Não se pode ignorar a implantação do cristianismo como uma das linhas mestras do romance, como Azambuja já deu nota através de Paulo de Tarso. Explica esta importante presença da seguinte forma: «Nunca poderia passar ao lado dele, porque a implantação do cristianismo abalou por completo o mundo antigo e Paulo de Tarso foi o mais formidável dos motores da nova seita. Acredito até que o cristianismo teria morrido se não fosse ele. A nova religião infiltrou-se gradualmente no império romano, mas de uma maneira tão profunda que lhe subverteu a índole e contribuiu para o deitar abaixo. Se era inicialmente a seita dos deserdados, dos miseráveis e dos escravos, desprezada e até vilipendiada pelos eruditos - Plínio chama-lhe uma “superstição extravagante e tola” -, acabou por atrair as mentes mais cultas, como se já não houvesse forma de escapar a este movimento irreversível.»
Conclui que «a civilização romana era detestada pelos primeiros cristãos, como mostra o Apocalipse, escrito no fim do século I, um livro de ódio visceral contra Roma, essa “mulher das sete cabeças cornudas, coberta de nomes blasfemos”. Que está repleto de ameaças explícitas contra as “sete cabeças” que são as sete colinas da cidade, e os nomes blasfemos são as divindades romanas inimigas de Cristo. Roma representava tudo o que os cristãos combatiam: o poder, a riqueza e a luxúria. Os seus tentáculos oprimiam e saqueavam a terra dos judeus, onde surgiu o cristianismo, várias vezes ultrajando a religião judaica, como fez o legado Quintílio Varo, ao decretar um censo, o que era proibido pelo deus de Israel. E Paulo conseguiu derrubar isto.»
BREVIÁRIO DA VINGANÇA
João Nuno Azambuja
Guerra & Paz
422 páginas
Outras novidades literárias
MAIS DO QUE ATUAL
A Zigurate tem vindo a publicar livros que surgem no momento exato em que os leitores mais precisam deles e um dos mais recentes, A Guerra dos Metais Raros, chegou às livrarias quando se começou a falar daquilo que o título refere. Ou seja, o que se escuta como polémica e luta pelos direitos de exploração mineral nos noticiários está bem explicado neste volume, onde se entende porque é que os metais raros são parte imprescindível das tecnologias mais modernas e a razão de a sua posse gerar tanto apetite e disputa entre as potências mundiais.
A GUERRA DOS METAIS RAROS
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Não é a primeira vez que se publica um relato sobre o naufrágio de um veleiro onde navegam duas pessoas que podem ser como qualquer leitor. Desde o início que o poder da narrativa seduz mesmo quem pouco se interessa por uma aventura destas, levando a história contada a partilhar uma angústia de quem não sabe se será encontrado e permanece num pequeno bote após um cachalote ter abalroado a sua embarcação.
NÁUFRAGOS
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