O físico que alterava a química poética
O nome de António Gedeão pode não ser conhecido de todos os portugueses, mas poucos serão os que não conhecem a versão do seu poema Pedra Filosofal, de que Manuel Freire fez uma canção. Mesmo não conhecendo o poema inteiro, há versos que todos entoaram uma ou outra vez ou tomaram como inspiração para a vida. Daí que uma biografia que agora chega às livrarias, de autoria de Cristina Carvalho (filha do poeta), que sucede a uma primeira edição de há mais de uma década na Editorial Estampa logo desaparecida com o fim da editora, ofereça aos leitores a possibilidade de conhecer melhor o pseudónimo e o homem, Rómulo de Carvalho, que tem por título António Gedeão – Príncipe Perfeito.
É curioso que seja o nome que o professor de físico-química utilizava como pseudónimo que esteja na capa. Um nome adotado e que a dada altura da sua vida “matou”, muito antes de morrer. A autora lembra-se bem da explicação que o pai lhe deu: “O poeta já não tem mais nada a dizer”. Contudo, acrescenta, “ainda o ressuscitou com os livros Poemas Póstumos e Novos Poemas Póstumos. Foi uma atitude assumida por ele.” Já agora, porque escolheu o pai tal pseudónimo: “Tanto quanto sei, António porque era o nome de um seu tio, de que gostava muito, e Gedeão porque era o nome de um seu aluno, que achava invulgar.”
Questiona-se Cristina Carvalho sobre o conhecimento nacional do biografado, em muito devido ao tema Pedra Filosofal. Sem essa canção, a sua poesia seria menos conhecida? É uma pergunta que a autora considera de difícil resposta e para a qual faz um exercício que só pode ser de “adivinhação”. Diz: “António Gedeão tem vários livros de poesia com muitos, muitos poemas. Na sua totalidade ou quase totalidade, a sua poesia não é conhecida. O poema Pedra Filosofal, em boa hora musicada e cantada pelo magnífico Manuel Freire, iluminou de facto a voz de um poeta que não era assim tanto do conhecimento geral. Na verdade, tornou-se num poema universal. Só depois é que outros seus poemas passaram a ser conhecidos, por exemplo, Lágrima de Preta, Calçada de Carriche, Poema para Galileu ou Fala do Homem Nascido, para dar alguns exemplos. No entanto, não faltam muitos mais poemas por conhecer. Portanto, pode dizer-se da sua poesia, que meia dúzia de poemas são conhecidos além do que Manuel Freire indicou, de uma forma maravilhosa.”
FOTO: Eduardo Tomé / Arquivo DN
Cristina Carvalho não é estreante neste retrato de personalidades que todos conhecem, tendo na sua obra títulos sobre Selma Lagerlöf, Ingmar Bergman, Strindberg, W.B. Yeats ou Paula Rego. Não são bem biografias nem apenas vidas romanceadas, antes um olhar mais profundo sobre figuras que seduzem os leitores e às quais a autora imprime um registo muito próprio. O Príncipe Perfeito – que é praticamente a versão de 2012 - não está distante dessas visões que tem publicado, por isso é impossível não querer saber até que ponto ser filha do biografado criou dificuldades em separar a opinião pessoal sobre o pai da que existe para os outros enquanto figura pública. Cristina Carvalho nega qualquer dificuldade: “Não, nunca tive. Consegui sempre imaginá-lo, porque o conhecia bem, no seu quotidiano. Sendo vivências em conjunto, de certo modo facilitaram as descrições, ainda que sejam 'literárias'. No entanto, fazer este trabalho, depende em muito de cada um; para mim foi fácil escrever sobre o meu pai, para outras pessoas, escrever sobre familiares próximos pode ser muito difícil."
A dado momento, Cristina Carvalho antecipa a pergunta “Rómulo não tinha defeitos?”. Será para justificar o título e a admiração que se observa na escrita é o que se lhe pergunta. A resposta é direta: “Rómulo não tinha defeitos? Claro que tinha, independentemente do que eu ou outra pessoa, subjetivamente, possa entender como defeitos. O estar, muitas vezes silencioso seria um defeito? O ser rigorosíssimo e organizadíssimo, o ter um olhar penetrante, mas sempre compreensivo… talvez sejam defeitos para muita gente.”
Entre toda a bibliografia de Cristina Carvalho, terá sido este o livro mais difícil de escrever? A autora garante que não: “Não foi o mais difícil, muito provavelmente porque conhecia e convivia com a pessoa diariamente, desde que nasci e até mais ao menos os meus vinte anos. Depois, continuei por perto, fomos sempre muito próximos, mas já não diariamente como até então.” Iria o pai rever-se nesta memória? Sim, diz: “Ele gostava do que eu escrevia e acreditava nas minhas possibilidades de escritora desde que era pequena. Mas essa é outra história!” Durante o tempo em que reuniu documentação para a biografia, a autora não encontrou surpresas no espólio. Refere que não foi necessário fazer “uma busca exaustiva, pois tudo o que precisava existia no meu conhecimento dele".
Entre a recolha de episódios para compreender o perfil psicológico ou ter uma boa história, existe um que relata a desistência de visitar a casa da infância. Revela que “foi uma história imaginada". Que "poderia ter acontecido, porque havia sempre uma dose de interrogações, não de hesitações, nele próprio: 'Subo, não subo, estou a querer o impossível, esta casa já não tem ninguém da minha família, apenas o espaço que gostaria muito de rever'. Ou seja, fazem parte do que gostaria que fosse ele a desejar, tal como eu queria tornar a entrar na casa da minha infância, em Coimbra. Sempre hesitei em o fazer e sempre desisti. Já a vi por fora, mas o que eu queria era vê-la por dentro. Imagino, portanto, quase tenho a certeza, de que ele também desejaria ver a sua casa de infância. Esta parte, está mesmo romanceada”.
Entre os detalhes de uma vida menos felizes desta biografia de Rómulo de Carvalho está o desgosto que sentiu a seguir ao 25 de Abril de 1974, com a confusão dos tempos revolucionários. Cristina Carvalho aponta o que o desencantou: “A desordem social, os comportamentos básicos alterados por uma 'liberdade' que até então não existia e que perturbou imenso o seu quotidiano de observações. As interrogações, a desarmonia e a tristeza com que assistiu a cenas desse dia a dia, constituiu uma desilusão social imensa. Contou-me histórias do comportamento de alunos, não os dele, mas aos quais assistiu, que o deixaram incrédulo. Quando descreveu algumas dessas cenas impróprias, fê-lo de lágrimas nos olhos.”
Sendo um livro que esteve desaparecido durante mais de uma década, que leitores espera a autora ter? O desejo é de que “tenha muitos e bons leitores”. O facto de ser um livro desaparecido tanto tempo, admite, “fará com que tenha nos dias de hoje muito boas hipóteses de continuação e de sobrevivência. O meu público leitor – e estou a falar agora apenas dos romances biográficos que já escrevi – costuma dizer que são bons leitores, atentos e curiosos. Este tipo de livros que escrevo refletem o que sinto e, de alguma maneira, tal como o meu pai me ensinou, fazem nascer um desejo de dádiva sobre aquilo que sei. Gosto de dar a conhecer o que sei melhor, de uma maneira atrativa e simples. Daí que, espero e desejo, que leiam mais este meu livro que escrevi para todas as pessoas com amor”.
Cristina Carvalho
Relógio D’Água
169 páginas
LANÇAMENTOS
A ENCICLOPÉDIA DE IMAGENS
O título da introdução é Ana Baião, a fotógrafa do Cante, e será o mais apropriado para esta enorme recolha de imagens que a jornalista tem vindo a colecionar ao longo dos anos e a deixar fixadas para a posteridade da crónica sobre esta arte. Acresce a reprodução de uma redação do cantor Vitorino, de que se poderia dizer ser a melhor legenda para muitas das visões que Ana Baião vai registando neste álbum. Desde a primeira fotografia, da paisagem alentejana, à última, de um cantador com a neta, passando por um longo friso de bocas afinadas, de instrumentos à mão, de povo a assistir ao canto de homens – e de algumas mulheres - aprumados, e, principalmente, de expressões que refletem o empenho desses cantadores, o que sai é uma História da voz para um registo definitivo em livro. A enciclopédia captada permite o conhecimento do Cante e não há melhor do que estas imagens tão particulares para se sentir a emoção que vai sempre perpassando por estas duzentas páginas.
10 ANOS DE CANTE
Ana Baião
Tradisom
206 páginas
PODER, SOLIDÃO, AMARGURA
Na capa há uma frase que resume o que poderia ser este livro: “Hão de dizer muito mal de mim”. Não é o objetivo do autor, nem é isso que faz em quase duzentas páginas em que recolhe muitas das mais importantes citações do eterno governante, antes uma seleção criteriosa que espelha a vida de Salazar, através do que lia nos discursos, nas entrevistas e nas intervenções públicas. Antecipando as “frases”, o autor contextualiza-as, o que permite alguma objetividade sobre alguém que ainda não foi reinterpretado o suficiente no nosso país.
Manuel S. Fonseca
Guerra & Paz
190 páginas