Kate Winslet e Melanie Lynskey em Amizade Sem Limites (1994): 'folie-à-deux'.
Kate Winslet e Melanie Lynskey em Amizade Sem Limites (1994): 'folie-à-deux'.Direitos reservados

O cinema no divã

Na maré das novidades literárias deste verão, uma edição discreta - 'Cinema & Psicanálise: Diálogos' - destaca-se pela riqueza da proposta: olhar os filmes a partir das manifestações do inconsciente.
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Pegando nas palavras de Sigmund Freud, que se encontram no prefácio à quarta edição dos Textos Essenciais da Psicanálise (Publicações Europa-América), “é uma satisfação podermos verificar que o interesse pela pesquisa psicanalítica se mantém em todo o mundo tão forte como dantes”. O fundador da Psicanálise notava esse facto em 1920, quando “os vendavais da guerra amainaram”. O que diria se soubesse que no século XXI a ciência por si criada daria ferramentas para o brotar de uma específica sensibilidade cinematográfica? É mais ou menos isso que está em causa nas páginas do livro Cinema & Psicanálise: Diálogos, de Elsa Couchinho e Ana Belchior Melícias, com prefácios do crítico João Lopes e da psicanalista Magda Guimarães Khouri, agora editado pela Freud & Companhia (à venda no website da editora e, fisicamente, na livraria Linha de Sombra, sediada na Cinemateca).

Com textos que tanto abordam o cinema contemporâneo como obras clássicas, este volume de manuseamento prático e estética cuidada organiza-se em capítulos correspondentes às fases da constituição do ser, desde os Primeiros Vínculos à Humanidade, passando pela Infância, Adolescência e Comunidade. Que é como quem diz: cada prosa dialogante das psicanalistas Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho leva-nos na grande viagem que é o crescimento humano - biológico e social -, através de filmes que permitem sondar tecidos narrativos ao encontro de uma reflexão psicanalítica, despojada daquele bloqueio formal do discurso académico. Cada olhar versado em conceitos, que só vagamente nos eram familiares, faz-nos (re)descobrir o filme como objeto escavado, pleno de tesouros de interpretação psíquica.

Cinema & Psicanálise: Diálogos

Elsa Couchinho e

Ana Belchior Melícias

Edição Freud & Companhia

192 páginas

De Fanny e Alexander a O Espírito da Colmeia, de Brincadeiras Proibidas a O Poder do Cão, ou seja, de Ingmar Bergman a Víctor Erice, de René Clément a Jane Campion, Cinema & Psicanálise cobre uma variedade de títulos e realizadores que, à partida, não estariam necessariamente no radar dos estudos psicanalíticos (enfim, Bergman seria neste contexto a exceção óbvia). Por outro lado, um caso que parece “obrigatório” é o de Heavenly Creatures/Amizade Sem Limites (1994), esse pouco lembrado filme dos primórdios da obra de Peter Jackson, sobre um homicídio perpetrado por duas adolescentes (a história real da escritora Anne Perry), que surge aqui num interessante ângulo em torno da “folie-à-deux” (psicose compartilhada), que passa pelo tecer de “um devaneio de terror crescente”, elabora Melícias, em que “cada uma potencia as partes primitivas da outra”... Já agora, vale a pena acrescentar que foi este o drama que apresentou Kate Winslet no grande ecrã, ao lado da também debutante Melanie Lynskey.

É, assim, muito prazeroso deparar com uma circulação de ideias que acrescentam “imagens” à imagem fílmica. Como, por exemplo, a metáfora da galinha e dos ovos, num dos textos escritos a quatro mãos, para falar do novo cenário de acolhimento da menina órfã de Summer 1993/Verão 1993 (2017), bela longa-metragem de estreia de Carla Simón - “Longe da estimulação da cidade, o tempo de férias, o espaço rural e a regularidade dos rituais e festividades comunitárias, configuram o tempo-espaço potencial para o luto e para as inevitáveis re-configurações familiares, que assustam (como as galinhas) e podem ser frágeis (como os ovos)” -, ou o “espaço onírico da gruta”, como lhe chama Couchinho na análise dedicada ao documentário Cave of Forgotten Dreams/A Gruta dos Sonhos Perdidos (2010), de Werner Herzog, que encerra o percurso do livro no “útero da Humanidade”.

A filosofia do diálogo

Ao longo de quase duas centenas de páginas, sente-se o labor do pensamento a trazer novas leituras ao fator humano das histórias, como se os argumentos fílmicos, na dissecação da sua matéria interior, oferecessem canais dinâmicos para se falar de Psicanálise. Em vez da perspetiva crítica, ou de meras questões de gosto, o que move o diálogo entre as duas áreas, e as duas autoras, é “uma postura filosófica que se demarca, ponto por ponto, da vulgarização dos filmes hoje em dia dominante no chamado espaço mediático”, como identifica João Lopes no prefácio.

Nascido do blogue homónimo criado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho em 2021, Cinema & Psicanálise ganha agora a forma física de um “saber emocional”, portátil, que se lê bem no divã ou na praia.

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