Por vezes, surge um filme tão especial que nos apetece defini-lo como um acontecimento "que não se parece com nenhum outro". É um rótulo fácil, simplificador da pluralidade da história do cinema. Ainda assim, arrisco sugerir que Das Profundezas, do italiano Michelangelo Frammartino, é um desses filmes, a meu ver dos mais belos, e também mais radicais, que o mercado português nos revelou neste ano de 2022 - segundo informações disponíveis no site da respetiva distribuidora (Risi Film), a partir de hoje pode ser visto, para já, em Lisboa (El Corte Inglés, cinema Fernando Lopes), Porto (Trindade, Arrábida) e Coimbra (Casa do Cinema)..Das Profundezas intitula-se no original Il Buco - à letra: "O Buraco". O seu objeto central é o chamado Abismo de Bifurto, um "buraco" na região da Calábria, impressionante fenómeno natural que se prolonga por 700 metros abaixo da terra, formando a segunda gruta mais funda de todo o planeta. O filme evoca a descoberta - e o trabalho de mapeamento - dessa prodigiosa maravilha, em agosto de 1961, por elementos do Grupo Espeleológico Piemontês..Estamos perante um testemunho sobre uma admirável saga humana e científica. Seja como for, creio que pode ser francamente redutor tratar Das Profundezas como uma espécie de lição "didática". Nada disso tem a ver com o respeito e a admiração pela espeleologia que, certamente, o filme consagra. Mas seria uma pena que um tique cultural muito na moda - confundir um filme com o seu "tema" - menosprezasse a singularidade cinematográfica daquilo que nos é apresentado..Pelo menos até certo ponto, Das Profundezas apresenta-se como uma variante das ambivalências que ligam "documentário" e "ficção". Em boa verdade, a questão é tão velha como o próprio cinema. Mesmo os irmãos Lumière, pioneiros dessa crença segundo a qual o cinema nasceu para mostrar o "mundo à nossa volta", deixaram um legado que está longe de ser alheio a subtis mecanismos de encenação..Vale a pena citar um ligeiro paralelismo com algumas experiências do alemão Werner Herzog. E não apenas porque ele assinou um excelente documentário, A Gruta dos Sonhos Perdidos (2010), dedicado à Gruta de Chauvet, no sul de França. Também porque um dos seus projetos mais delirantes, Fitzcarraldo (1982), narra a odisseia surreal de um homem que quer construir na Amazónia uma sala dedicada à ópera. Que acontece aí? Pois bem, tal como no filme de Frammartino, a aventura narrada tende a confundir-se com a aventura do cinema para construir a sua narrativa..Assistimos, assim, a um elaborado processo de descoberta daquela zona da Calábria, a ponto de Frammartino organizar o seu filme a partir de enquadramentos que se vão repetindo sem que isso os reduza a "postais ilustrados" ou "pinturas". O que mais conta é o tempo de tudo isso: cada paisagem expõe a sensualidade de uma duração que nos permite compreender que, das árvores aos fios de água, tudo está em permanente transfiguração..Seguimos as cenas desse trabalho através de um contraponto (a sugestão musical da palavra está longe de ser indiferente) com momentos do quotidiano de um velho pastor que, a certa altura, adoece com gravidade. No limite, a "forma" de Das Profundezas é a de uma parábola filosófica - entre o pressentimento da morte e a fascinante revelação da vida interior da terra..O filme quase não tem diálogos (ou são indecifráveis). Mas essa "ausência" está longe de ser uma limitação, ainda menos um tique formalista: aquilo que nos é dado ver decorre, não necessariamente da sua "verbalização", mas dos modos de relação dos humanos com os lugares que habitam e percorrem, não sendo obviamente indiferentes os sinais do começo da década de 60 que o filme recolhe..A esse propósito, registe-se a cena que acaba por se tornar inevitavelmente irónica, junto ao café da aldeia, em que descobrimos uma pequena "multidão" a seguir num televisor (a preto e branco) uma reportagem sobre um arranha-céus recentemente construído em Milão. Ou ainda o facto de os espeleólogos, para avaliarem a profundidade dos espaços que vão "conquistando", atirarem para o "buraco" folhas de revistas da época, a que previamente lançaram fogo, em que identificamos rostos como Sophia Loren ou John F. Kennedy..Quem viu a anterior longa-metragem de Frammartino, As Quatro Voltas (2010), não poderá deixar de reconhecer que a sua visão envolve um primitivismo que continua a existir como a mais paradoxal das vanguardas. A saber: o seu cinema nasce "apenas" de uma paciente escuta (a começar pelos sons com que, logo no início, o pastor comanda os animais) e de uma encantada e encantatória observação da luz. Neste aspeto, convém não esquecer que as imagens têm assinatura do genial Renato Berta, diretor de fotografia suíço que trabalhou com dois autores recentemente falecidos, Alain Resnais e Jean-Luc Godard, e também em vários títulos de Manoel de Oliveira (incluindo a longa-metragem final, O Gebo e a Sombra, de 2012) - o seu tratamento da luz em Das Profundezas tem qualquer coisa de milagroso..dnot@dn.pt