O lançamento do documentário O Que Podem as Palavras - sobre as "Três Marias" e as Novas Cartas Portuguesas - associado ao significado militante do Dia Internacional da Mulher (assinalado ontem, 8 de março) pode contribuir para dissolver as singularidades do filme numa retórica banalmente feminista. De facto, em muitos dias simbolicamente assinalados pelo calendário, quase sempre triunfa uma perspetiva "generalista", mediaticamente muito poderosa, que tende a equivaler o que, de facto, é diferente, por vezes inconciliável - por exemplo, o grau de exigência de muitos estudos e testemunhos sobre a desigualdade social, laboral e política de homens e mulheres face às boas intenções de alguns discursos típicos de talk shows televisivos..Como é óbvio, não se esperaria, muito menos exigiria, que O Que Podem as Palavras fosse (também) uma reflexão sobre tal conjuntura. As duas realizadoras, Luísa Sequeira e Luísa Marinho, elaboram todo o filme a partir de um exercício de memória, que é também um método de investigação, em que o fator primordial acaba por ser, justamente, o conhecimento do contexto histórico em que tudo aconteceu..A saber: a escrita das Novas Cartas Portuguesas por Maria Isabel Barreno (1939-2016), Maria Velho da Costa (1938-2020) e Maria Teresa Horta (n. 1937); a proibição do livro, em 1972, pelo sistema de censura do Estado Novo; a repressão da polícia política (PIDE/DGS); o julgamento das autoras; e, por fim, em 1974, já depois da queda do regime salazarista/marcelista, a absolvição das três escritoras. Nesta perspetiva, O Que Podem as Palavras pode ser uma contribuição importante para superar uma visão maniqueísta das vivências do pré-25 de abril, visão não poucas vezes favorecida por alguns discursos de esquerda e de direita, em que o nosso passado surge automaticamente descrito como um buraco negro em que, no limite, nem sequer existiram pessoas, apenas noções abstratas de "repressão" e "resistência"..De que se trata, então? Pois bem, antes de tudo o mais, desse poder que o título sinaliza. Confrontando-se com a herança das Cartas Portuguesas escritas pela freira portuguesa Mariana Alcoforado (1640-1723), as autoras das Novas Cartas Portuguesas uniram-se, antes do mais, em nome de valores e formas de energia que as palavras podem transportar. E através de um projeto que, antes de atrair a classificação de "feminista" (o que, aliás, é analisado de modo muito interessante no interior do próprio filme), afirma a vitalidade da escrita - e, por isso mesmo, o desejo de literatura..Estreado no Doclisboa de 2022, onde recebeu o Prémio do Público, O que Podem as Palavras resultou de um labor de uma década, tendo como matéria primordial uma série de conversas das três escritoras com Ana Luísa Amaral (1956-2022), responsável por uma edição anotada das Novas Cartas Portuguesas (ed. Dom Quixote, 2010). Na introdução a essa edição, Ana Luísa Amaral refere a obra como "um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma invulgar originalidade e atualidade, do ponto de vista literário e social.".É pena que o filme tire pouco partido das situações de diálogo em que nasceu. De facto, além de ser uma presença escassa nas imagens, Ana Luísa Amaral quase nunca surge a dialogar com as protagonistas. Fica a dúvida (que não sei esclarecer): provavelmente, o material registado não permitia uma montagem muito diferente; ou então as realizadoras consideraram que o mais importante era o testemunho "autónomo" das escritoras..No plano específico da narrativa cinematográfica, O Que Podem as Palavras utiliza com eficácia os elementos que tem à sua disposição, a começar, claro, pelos testemunhos das "Três Marias". Muito interessante é o contraponto, informativo e visual, que se vai estabelecendo: por um lado, temos os diversos materiais de arquivo, incluindo um elucidativo fragmento de uma entrevista de Fialho Gouveia às autoras, a presença do livro na "Primeira Acção Feminista Internacional" (Nova Iorque, 3 julho 1973) ou as fotos apresentadas por Gilda Grillo; por outro lado, os momentos sem "ilustração" fotográfica ou cinematográfica - em especial os interrogatórios da PIDE e o julgamento - são tratados através de desenhos, tão originais no estilo como sugestivos na informação que veiculam, da autoria do artista brasileiro Sama..Nesta perspetiva, Luísa Sequeira e Luísa Marinho assinam um filme que sabe valorizar o olhar documental na sua pluralidade informativa e conceptual. A história (literária ou política, por exemplo) não é aqui um "objeto" fixo no tempo, à espera de ser "reproduzido", mas sim um labirinto de muitos elementos que as palavras redescobrem, refletem e relançam. Com a sua eloquência, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta fazem o resto..dnot@dn.pt