Quando se pensa na era vitoriana e pós-revolução industrial, pensa-se em Charles Dickens. A vida nas páginas dos seus romances. Já o boxe praticado nessa época em Londres não remete propriamente para coisa nenhuma – ainda que Dickens, ele próprio, tenha sido um dos apreciadores de tal desporto violento e popular, como identificam os estudiosos da sua literatura em certos jogos de palavras, e como se confirma, objetivamente, pela sua presença entre a multidão que assistiu ao famoso combate entre o americano John Heenan e o inglês Tom Sayers em 1860, uma luta sangrenta cuja brutalidade mudaria a história do boxe ao fim de duas horas e 27 minutos... Sim, tornou manifesta a necessidade de se criar códigos de conduta, como por exemplo, rounds de três minutos com intervalo e o uso de luvas. Foi por este universo de punho livre que se interessou Stephen Graham, brilhante ator britânico, produtor e um dos protagonistas de Mil Golpes, passando o bichinho a Steven Knight, o criador de Peaky Blinders, que, por sua vez, desenvolveu o potencial televisivo de uma história com três personagens verídicas: Hezekiah Moscow, Sugar Goodson e Mary Carr. A série de seis episódios que estreia hoje no Disney+ apresenta-se então como um novo ângulo sobre a Londres vitoriana e o seu fascinante submundo. O sabor do East End Quem são Hezekiah Moscow, Sugar Goodson e Mary Carr? Logo no primeiro episódio vemos Hezekiah (Malachi Kirby) a chegar a Londres, vindo da Jamaica com o seu melhor amigo para trabalhar no jardim zoológico como domador de leões. Mal sonha ele que a cidade lhe reserva outros caminhos, começando pela figura de Mary Carr (Erin Doherty), líder de um gangue de ladras chamado Forty Elephants, espécie de sufragistas marginais, que se apresentam assim ao espectador: Mary finge um parto espontâneo no meio da rua, que atrai uma horda de transeuntes bem vestidos, enquanto as suas carteiristas, numa coreografia pouco discreta, aproveitam os muitos bolsos à disposição... São tão performáticas que Hezekiah, assistindo a tudo, topa a situação. E no seu reencontro mais tarde com Mary, não tem papas na língua. .Sugar Goodson (Stephen Graham) aparece depois, quando as tentativas frustradas do jamaicano em integrar a sociedade londrina pelas vias legítimas o empurram para um combate ilegal com esse temido pugilista veterano do East End, que também tem uma ligação a Mary. Aos poucos, forma-se uma aliança secreta entre estas personagens de sentimentos turvos – com outras à mistura –, sendo sobretudo a inimizade forjada entre Hezekiah e Sugar que permite olhar para dois homens que, noutras circunstâncias, seriam cúmplices. Para quem viu Peaky Blinders, este mergulho no ambiente ilegal do boxe na Londres de 1880 é a prova de que Steven Knight continua a deliciar-se com narrativas de época que perseguem figuras do mundo do crime carregadas de verve urbana. Não faltam esquemas, conversas cruzadas, danças de ringue e uma banda sonora impetuosa para fazer circular o sangue numa série que nos quer meter dentro do cenário. Curiosamente, A Thousand Blows, título original, não é tanto ficção televisiva que se destaque pela filigrana do argumento – esse, prático e veloz – quanto um trabalho notável de recriação de época, com atores de calibre irrepreensível. Quer dizer, qualquer uma das personagens centrais está em ótimas mãos e contribui para o bloco sólido do elenco: Erin Doherty, conhecida pelo papel de princesa Ana em The Crown, dá a Mary Carr uma desenvoltura impressionante num meio pouco propício à ação feminina; Malachi Kirby transporta uma luminosidade inesperada, tendo em conta o passado trágico do jovem jamaicano Hezekiah Moscow; e Graham, dono e senhor de uma fácies que domina qualquer cena, confere a Sugar o grande lamento interior que infunde em Mil Golpes uma angústia arrastada, quando tudo à volta se movimenta num ritmo certo. Apesar de o essencial girar em torno da realidade do boxe, a verdade é que Mil Golpes extrai mais vida das jogadas ambiciosas das mulheres do grupo Forty Elephants do que das lutas masculinas. No fim de contas, é a liderança de Mary, a quem chamavam “Rainha”, que oferece uma pincelada original à série e faz transitar a narrativa por momentos para o West End, a parte rica de Londres. Segundo relatos da altura, detalhados numa notícia do Daily Mail sobre roubos estilosos a acontecer nos hotéis do West End, os procedimentos eram os seguintes: “As ladras vestem-se no pico da moda, passeiam-se pelos corredores como se fossem as donas, batem descontraidamente à porta de algum hóspede rico enquanto ele está a almoçar, entram sob o olhar dos empregados, roubam tudo o que de valor esteja à vista e saem calmamente”. Ora, é qualquer coisa como isto que Knight recria. .‘Dia Zero’: Robert De Niro a presidente