"O azulejo encontra-se em todo o mundo onde os portugueses chegaram. É marca patrimonial distintiva”
Na apresentação que leva à conferência detém-se no azulejo nacional e descreve-o como uma “característica distintiva da arte portuguesa”, acrescentando-lhe a “imaginosa capacidade de criar efeitos cenográficos poderosos”. A que efeitos se refere?
Entre as modalidades artísticas que caracterizam a cultura do nosso país em termos de práticas continuadas e dialetos identitários, o azulejo ocupa lugar de grande destaque. Desde o século XV, com fases de grande brilhantismo e originalidade, a prática dos revestimentos azulejares contribuiu para requalificar a arquitetura sacra e civil, dotando-a de um significativo caráter cenográfico. Trata-se, pois, de uma linguagem artística cuja projeção na vivência quotidiana se tornou de grande impacto visual e com força caracterizadora da construção, tanto nas fachadas como nos espaços interiores. Todos podemos avaliar esse efeito e constatar que se trata de um verdadeiro “contentor de memórias e afetos acumulados”, tal como diz a estudiosa da azulejaria luso-brasileira Dora Alcântara, que vê justamente na criação azulejar “uma sinalização viva das nossas mais profundas raízes identitárias”.
Também destaca os “processos de fazer”. De que forma fizemos e como substanciam esses processos uma arte singular, com características portuguesas?
Lamentavelmente, dominou na História da Arte doméstica um olhar distraído, arrogante e auto-menorizador. Durante muito tempo o azulejo foi considerado “arte menor”, de efeito exclusivamente decorativo e sem capacidades para competir com as “artes eruditas”. Tal como outras “artes ornamentais”, como a talha dourada, o embrechado, o esgrafito, o fresco, o stucco. Mas a verdade é que a linguagem azulejar soube empregar os melhores artistas, incluindo os que tinham formação internacional. É conhecido o caso de António de Oliveira Bernardes, ótimo pintor de óleo e fresco que, na viragem do século XVII para o XVIII, se dedicou sobretudo à azulejaria e nos legou obras prodigiosas. O fabrico de azulejos, que não se restringiu a Lisboa, o centro principal, mas também a Coimbra, e até a Serpa, gerou em algumas fases produção autóctone que se espalhou por quatro continentes onde a influência portuguesa se manifestou e miscigenou. O grande valor do azulejo é que, mesmo em situações de periferias e regionalidade, soube reinventar as suas próprias soluções. Com a autonomia da História da Arte no século passado pôde-se finalmente consagrar o sentido original e eterno do azulejo. Os estudos de referência de José Queirós, Vergílio Correia, Reynaldo dos Santos e, sobretudo, João Miguel dos Santos Simões e José Meco, muito contribuíram para o seu definitivo reconhecimento, que hoje é consensual. Novos e ambiciosos programas, como o AZ-Infinitum do ARTIS-UL, coordenado por Rosário Salema de Carvalho, e o SOS-Azulejo, dirigido por Leonor Sá, abriram campo a outras perspetivas, desde a inventariação integral à salvaguarda.
Em momento anterior referiu-se ao azulejo como “a nossa ardência cenográfica”. Qual o alcance destas suas palavras?
Este Ciclo que o Instituto de Alta Cultura da Academia das Ciências promove vem mostrar, mais uma vez, como se processou a relação viva do azulejo com as arquiteturas sacra e civil. Uma relação expressa em efeitos decorativos integrais ou em narrações iconográficas coerentes. Como especificidade do património português, assume-se uma manifestação de grande projeção cenográfica, capaz de animar espaços de arquitetura chã e perímetros urbanos com a força polícroma das fachadas revestidas de cerâmica. O azulejo encontra-se em todo o mundo onde os portugueses chegaram, do Oriente às Américas. É marca patrimonial distintiva. Com o seu estudo, salvaguarda e proteção, que importa cumprir como imperativo das políticas culturais, contribuímos para o reconhecimento de um acervo que possui inegáveis valências universais. É por tudo isto que o azulejo português é um unicum no contexto internacional.
Quer relevar alguns exemplares da nossa azulejaria que se destacam neste domínio?
Existem, apesar das lamentáveis destruições, por exemplo as dos “restauros puristas” do Estado Novo, milhares de exemplos de qualidade magistral, desde a igreja de Marvila em Santarém no século XVII, às igrejas da Misericórdia de Évora e de São Lourenço de Almansil na fase barroca-joanina, às fachadas românticas de Lisboa - e de Belém do Pará - no século XIX, às intervenções modernas de Maria Keil, e outros, na Avenida Infante Santo, sem esquecer das estações do Metropolitano de Lisboa.
Sublinha que no contexto da arte portuguesa o tema dos fingimentos ainda é pouco explorado. Não obstante, há alguns trabalhos que queira destacar?
Escolhi este tema para o Curso justamente por ser dos menos estudados. Mas o azulejo ofereceu e oferece neste domínio dos fingimentos cenográficos uma arma relevante. No século XVII, por exemplo, existem brutescos pintados no azulejo cozido, associados a azulejos reais, à entarsia simulada, a fictícios marmoreados, a stucchi, esgrafitos. Ainda há pouco revalorizei uma esquecida capela, a de S. José em Azinhaga, do século XVII, belo exemplo de como o azulejo de padronagem, a talha dourada, a pintura de brutesco, a imaginária e os têxteis fingidos se souberam reunir num singular programa artístico unívoco. Um espaço belíssimo, e pouco conhecido. Os portugueses viajam pouco no seu próprio país e desconhecem muitas obras-primas do nosso proverbial engenho de inventar espaços, que foi uma nota constante em nove séculos de arte portuguesa.
A “ardência cenográfica” a que alude mantém-se patente na azulejaria contemporânea?
Para mim, todas as obras de arte são contemporâneas justamente porque estão aptas a abrir-se à sedução, independentemente do seu tempo histórico específico. Penso que o conceito de trans-contemporaneidade é essencial na fruição de todas as obras de arte. O azulejo, de simples matéria frágil pintada e cozida, tem sempre sabedoria e engenho para se multiplicar, seja do século XVI ou do século XXI, em efeitos visuais diversificados que assumem fortíssimas concatenações estéticas cheias de memórias e afetos. Gosto muito, por exemplo, da intervenção plástica no novo átrio da Estação Sul e Sueste [‘Cota Zero’, por Catarina e Rita Almada-Negreiros, 2011]. E do trabalho da Galeria Ratton neste domínio da afirmação do azulejo contemporâneo. Em todas as obras de arte o fascínio estético rima com a sua fragilidade. Por isso não é demasiado insistir numa política de Gestão Integrada do Património, onde o Estado e as Autarquias, as Universidades e Academias, a Igreja, as associações cívicas, públicas e privadas, e a população no seu todo, se irmanem no sentido de preservar o azulejo, combatendo a ruína, o furto, a incúria e a desmemória. Trata-se de um imperativo democrático para a defesa de uma mais-valia que é de todos.
Acesso à conferência:
Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/94839946250
ID Reunião: 94839946250